AINDA HÁ ÍNDIOS

O ensaísta e poeta Gilberto Mendonça Teles, por generosidade, dedicou-me o poema "Etnologia", publicado em "Saciologia Goiana" e, após, em "Nominais".

O texto diz apenas, e eloqüente: "Ainda / Há Índios", numa configuração telegráfica reduzida pelo vazio e silêncio instigante do papel em branco. Nesse sopro estético a enfocar a etnia ancestral brasileira, há um clamor trágico e solitário dos indígenas. Esse brado instiga a consciência do poeta, e repassa ao leitor um sentido refinado de agonia, pela sonoridade repetitiva de "ainda-ainda" (ainda-há-índios). "Etnologia", a seu modo lacônico, ressoa como um gemido a expressar o padecimento de um povo, no tempo que exaure: até agora, até agora... há índios.

Não escondo a emoção de ser homenageado com esse poema, escrito há 20 anos, por poeta sensível e pensador sensato. Os indígenas suportavam momento crucial de preconceito e massacre. No meu caso, sinto-me atingido de maneira atávica pois, bisneto de uma moça indígena, sou caboclo descendente da nação pataxó, a mesma que recepcionou Cabral, na invasão ao Brasil. Só de perceber as coisas dessa minha gente, deste e doutros tempos, escritos já na "Certidão de Nascimento" do país - a Carta de Pero Vaz de Caminha -, fico ternamente comovido. Escreveu o cronista português: "[Diogo Dias] meteu-se a dançar com eles [os indígenas], tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao som da gaita... [Os indígenas agiam] como se fossem mais amigos nossos [os lusitanos], que nós deles. (...) Esta gente é boa e de bela simplicidade". A Carta alude àqueles vultos recatados, no esplendor da mais bela compostura, que o tempo não apaga e, por certo, revivem em cada til da história silvestre, agrária e urbana que fizeram do Brasil, o Brasil.

Eram mais de 8 milhões os habitantes nativos do país. Compunham um conjunto de nações, crenças, línguas e costumes sistêmicos, heterogêneos entre si, como seriam diferentes o invasor português e o escravo africano. Esquecendo de que o que nos interligava era a humanidade dos seres, os brancos os tratamos genericamente por "índios", e lhes tomamos a terra, e os confinamos nos engenhos do trabalho amargo, servil. E quase os dizimamos em 500 anos de violência e ambição. Em 1991, segundo o IBGE, havia 294 mil indígenas brasileiros, grande parte na condição de párias, comendo o lixo nas rebarbas das cidades, mortificados pela indigência. Houve quem declarasse que não haveria mais índios no Brasil, no século 21.

Muitos exemplos contradizem previsões. Dia desses assisti ao documentário "O Longo Caminho para Casa" (The Long Way Home, 1998), escrito e dirigido por Mark Jonathan Harris. Baseado em meticulosa pesquisa de imagens, e em depoimentos que o "mundo civilizado" tenta esquecer, enfoca o suplício dos judeus sobreviventes do Holocausto e, após, torturados pelos países aliados. Outra vez vivendo em condições subumanas, não muito diferentes do que lhes fizeram os nazistas, foram empurrados ao abismo do não-lugar, enxotados sem eira nem beira, nem esperança, nem nada. O filme narra a gesta dos sobreviventes de uma infâmia, postos defronte da tragédia de não se ter pra onde ir. No entanto, suas entrelinhas simbolizam a magia da existência, que renasce talvez com a intercessão de um mistério.

Peregrinando nos descaminhos da Europa, na fuga à perseguição dos ingleses, e do escárnio de outros povos, mas alentando o sonho da Terra Prometida (quimera de qualquer pessoa), aqueles seres esfomeados e esfarrapados vêem ressurgir do quase-nada a força estranha da existência: nascem centenas e centenas de bebês, como num ato de providência da vida em si. As mulheres judias já nem menstruavam, nos Campos de Concentração.

Faço declarações salpicadas e sinuosas, impressionado com as tabelas do Censo 2000, que o IBGE acaba de publicar. Se em 1991 havia 294 mil, somos agora 701 mil os indígenas brasileiros, "gente boa e de bela simplicidade", a arrancar o leite das pedras, na liturgia mítica de retorno à sua Terra Prometida. Nas colorações étnicas da nação brasileira, os declarados "brancos" cresceram em 19,7%; os indígenas elevaram-se em 139%. Ainda há índios!, escreveu o poeta. Mas, parece, movimentam-se outra vez o gesto de epifania e os enredos sublimes do bem. Isto se entende pela leitura dos signos de um vigor secreto - talvez a fé -, que é um dos motores do estar-se vivo. Manifesta-se o rito mágico da natureza e da vida, a expandir-se na aura invisível de uma busca do tempo perdido, de um longo caminho de casa. Tão humano que é divino. Mas impenetrável, se o tentamos perceber apenas sob a lente iluminada da razão.

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Romildo Sant'Anna, Livre Docente, escritor, pesquisador da cultura brasileira, curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' em São José do Rio Preto (São Paulo/Brasil).