Hoje me convenci de que não há bicho mais chato no mundo. É ele mesmo, o grilo. Sempre à espreita, mas secreto e salteador, semelha um graveto robótico, esquálido e pardacento. Construído de uma engenharia de peças e engrenagens lacônicas, e onipresente no ruído agudo e penetrante, o grilo tem por ofício rasgar, incansável, a cortina misteriosa da noite. Dizem que o detestável aparelho sonoro do bicho localiza-se na nervura das asas anteriores, apenas dos machos. Às grilas, silenciosas e certamente mal-amadas (por isso nunca propiciam berço, carinho e tetas aos grilinhos), é dada a prerrogativa de gerar a alta densidade demográfica dos grilos, no moto-contínuo de sua relação estridente com a humanidade. Freud explicaria o fenômeno como desajuste familiar em último grau, complicado pelo complexo edipiano em estágio crônico, tudo represado num cipoal negro de desafetos. Mas não o fez porque, em exceção aos parâmetros radicais da psicanálise, tal ajuizado fugiria do âmbito dos sonhos. Assim, a terapêutica ao surto neurótico dos grilos fica em suspenso, no atual estágio da ciência.
Não querendo polemizar com o rigor e sacerdócio dos mais obstinados grilólogos das universidades, diria que os grilos inseto ou na versão humana , nasceram pra exercer a função patológica e ecológica da aporrinhação. Claro, sou leigo no assunto, e sobre o grilo certamente existem teses acadêmicas distinguidas e louvadas, com a chancela de respeitáveis órgãos de fomento à pesquisa e, portanto, da mais profunda relevância social. Isto, nos variados campos do conhecimento, indo da zoologia (na subárea “aerodinâmica dos invertebrados”), à semiótica (esta, em muitos casos, a mais fecunda encarnação intelectual do próprio grilo). Leigo, repito, não tive acesso às certamente perspicazes e esclarecedoras reflexões semióticas sobre o cri-cri, signo eloqüente, multimidiático, intertextual, metáfora viva do desamado bichinho.
Poucos nomes de animais se converteram em tantas palavras relacionadas ao grilo. “Gatuno” é malandro que furta, alegoria do gato; o que faz “cachorrada” aprontou alguma com alguém; “borboleteante” é o fulano volúvel, que vaga de déu em déu, como a borboleta. Mas seriam ridículos vocábulos como “pernilongar”, “besourar”, “onçar” e suas flexões. Pois o grilo nos legou verbos, substantivos, adjetivos, advérbios e compostos, conjugados e flexionados em ricas formas gramaticais. Diz-se que alguém “grilado” tem a sensação de inquietude, desassossego; quando algo possui “grilo”, a situação está complicada, atrapalhada (o contrário disto é “não ter grilos”); o adolescente “bicho-grilo” é o que aborrece, intratável, exibicionista; “encangar grilos”, na certa, é vadiagem.
Pelo visto, e pelo que se segue, o grilo é pior que seus primos, os malfadados gafanhotos. É responsável, comparsa, de um dos maiores cancros instalados no Brasil: o grileiro. Grilos, grileiros, grilagens relacionam-se à rapinagem, apropriação de terras públicas e particulares, por meio de títulos e documentos falsos. Grileiros, inda hoje, mobilizam o Judiciário, Ministérios e CPIs, quase sempre inócuos, pois, charlatões astutos, são amigos de comendadores, senadores e bacharéis. O subdesenvolvimento agrário no Brasil, a vergonhosa discrepância entre riqueza e miséria, as enormes tensões e matanças no campo, o extermínio aos indígenas, o coronelismo em todas as nuanças sociopolíticas são, em grande parte, herança e cultura da grilagem, grileiros e (ouso dizer), do pérfido bichinho, o grilo. Lobato, em “A Onda Verde e o Presidente Negro” revela a nefasta receita: primeiro, o fazendeiro falsificava a escritura de determinada área; em seguida, para dar uma aparência antiga aos documentos, colocava a papelada numa caixa, cheia de grilos. Corroídas e amareladas por substâncias liberadas pelos bichos, e após algumas semanas, as escrituras pareciam envelhecidas... autênticas.
Eia, pois, a orquestração repetitiva do grilo, e a alquimia esperta de seu transgênico mais próximo: o grileiro! Contra essa forma de inseto, até hoje não houve Josés, Roses e Dinorás, nem Rainhas que dessem jeito. Quem sabe, finalmente, nos tenha chegado o predador natural, algum bicho do sertão que virou mar, como a simpática sardinha, ou uma lula que seja, de estimação, ordeira e cumpridora. E consiga, com sal e água do batismo, domesticar parte das duas mil e quatrocentas espécies de grilos. Pois (na busca da justiça soberana, e que vivam na paz dos grilos) somos todos filhos da natureza. Também, e amém.
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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, recebeu o Prêmio ‘Casa de las Américas” Havana. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ São José do Rio Preto SP - Brasil