ROMILDO
SANT'ANNA

Graciosa Madalena


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Um predicado da mãe nossa eram histórias comoventes.  No cuidado de manter aceso o lenho do fogão, sua alma nos alentava dalgum mistério da vida. Assim, que se seguiram diário em nossa casa fábulas como de Maria Goretti. Órfã de pai, deixava o de comer pra dar de sobra aos pequenos. Certa vez, estando a mãe em lida na lavoura, acercou-se-lhe o vil de pouca barba, grosseiro em palavras, obsceno em desejos.   Ante a recusa, e bebido em ódios, traspassa-lhe o peito a punhaladas.  Caída em sangue, balbucia misericórdia ao malfeitor. Encolhíamo-nos todos, em labaredas de horror e comoção.  Um dia, com a história latejante na cabeça, quis conhecê-la em figura. Era pior do que nos contara a nossa mãe. Jazia sob o altar, em manta de cetim, dormida num caixãozinho de vidro.  Era certo que, salva por milagre, fora enterrada viva.  Guardei em segredo o mais sufocante dos meus medos.   E, toda vez, pedia à mãe que repetisse a nossa história preferida: a graciosa Madalena.

Sou camarada vivido e de uns tempos pra cá me tem caído tanto sinal de velhice.  Entrevejo a nossa mãe ofuscada em fumaça, buscando fios que a enredavam em histórias.  Madalena, pecadora.  Indaguei qual seria seu pecado.  Desconcertada, pois não se pronunciavam certas palavras, a mãe revelou-nos o enigma: luxúria.  Olhos brilhantes, fiz sinal de entendimento. Na nossa casa o que nunca houvera foi luxo (que nem a casa da Goretti).  E mesmo que fôramos ricos, haveria sempre a provocação dum rabino: vai firme, atira a primeira pedra!  Na teia das idéias, constatei que esta era uma cena preferida, complexa e resumida.  Um desafio, o constrangimento e deposição de todas as armas.  Trincaram-se os canecos de fúria, e Madalena se alevantou alumbrada, plena, e beija um homem por primeira vez. E, desde essa tarde, vagou noutras ondas do destino.

Pecadora?  Não.  Imagem difusa refletida em nosso espelho.  Eia, Musa dos quatro evangelhos, dos quatro cantos da terra, nos quatro elementos naturais. Maria dos quatro mares, das quatro fases da lua, dos quatro pontos cardeais.  Sombra da punição em toda gente, envergada nos quatro braços da cruz.  Vindo a saber que o salvador visitava um fariseu, eis que adentra a dama da cidade.   Quebrando o formalismo da casa, lentamente se aproxima.  Traz num frasco de alabastro a essência dos perfumes.   Em silêncio, banha os pés do convidado e, afagando-os levemente com a face, enxuga-os com os cabelos.   Parecera tresloucada não fosse a quietude inexplicável do gesto.   Após, na mudez profunda dos provérbios, afasta-se em passos que a trouxeram, delicados, claro enigma de luz pela fenda dos telhados.  Fechando a porta, dissipa-se no chão o rastro da carícia que comove e orvalha por dentro.

Pecadora?   A mulher seguiu em desespero os eitos sinuosos do calvário. Postou-se em frente do suplício e viu secar-lhe o último sangue. Ah, noiva morena dos injustiçados, enfermeira dos impuros, testemunha ocular de um celebrado granito fincado no átrio de todas as igrejas.  Eia, a Pietà que artista nenhum esculpiu e repousa na alma da gente.  Eia, vós, Madalena, guardiã do sepulcro, que à frente sua renasceu a dimensão do sublime!   Não pôde sequer tocá-lo, senão por dentro de si, grávida de amor.   Esquecida, aportou nalgum lugar, cheia de graça, embalando no colo uma criança.  A vida seguia sua senda de pedras, da fumaça de um fogão, dos contos por contar, vagantes no acaso dos encontros, pra que houvesse, infinitamente, a sagração de um mistério: ser gente de muitas histórias, viver.

 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.