O GLAUBER E A ROCHA



Há 40 anos acontecia um fato absolutamente extraordinário para a história da sensibilidade antropológica e estética no Brasil. Glauber Rocha começava a filmar “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o mais importante, o mais belo, o mais profundo, o mais umbilical, o mais culto, apaixonado e apaixonante filme brasileiro. A estréia se deu em 1964, e daí pra frente é história. Mas o ano de 63, no palco das filmagens – clareiras, no plano aberto e estorricado da caatinga – instala-se o bordão profético: “o sertão vai virar mar!”. Instaura-se, outra vez, a almejada aura de etnofilme no Cinema Novo, e consolida-se a Estética da Fome. Glauber, gênio aos 24 anos, começava a inscrever, com essa luz impressa em forma cinematográfica, a profecia de seu próprio nome em alemão: Glauber quer dizer 𠇌rença”, “convicção”; o sobrenome fala por si: Rocha.

O artista enfoca sua grandiosa aldeia – a terra do sol –, como pensou Tolstoi, na busca do ser universal. Nesse afã, busca isolar o marco mítico da nacionalidade ancestral. Sabe que, no grande sertão e suas veredas, está a utopia de redescobrir o Brasil, pelos brasileiros. Com o orfeão de vozes e imagens encantadas, a maestria de Glauber sacraliza o sertão. Cada fala, cada gesto, cada movimento, cada confronto e contraste da bela fotografia, parece brotar de um fundo ermo, infinito. Nunca “Magnificat Alleluia” de Villa-Lobos foi tão sacra; tampouco os murmúrios de romeiros e as sagas dos romances de cordéis. A partir das primeiras imagens, tudo converge ao mundo interior dos personagens, na maravilha rústica das relações primárias, no subjetivo dos seres em si, com os outros seres e com o mundo. Implanta-se um clima tórrido de sertão, onde já não importa o lugar preciso, mas a condição humana, em contato com um mundo de gente e paisagem estúpidos, que se fazem ancestrais. Esse filme magnífico é geografia sacralizada, etnografia, é geopolítica. O rigor e enlevo criativo, a inspiração e a transpiração magistral deixam de ser cinema discursivo, para atingir o grau máximo da arte: é manifestação. É o espírito em êxtase que se manifesta.

“Deus e o Diabo na Terra do Sol” assoma como síntese das carências humanas, filtradas por vetores essenciais da cultura brasileira: o suplício da fome, angústia da existência e a crença obstinada nas forças do além. Sendo o sertão um espaço de travessia, um rito de passagem, a paisagem de Glauber é em si um personagem alucinante, uma terra que é sol, dentro da qual entrecruzam seres perambulantes, encantados. Instaura-se uma estranha e obsessiva dialética: o que é a vida, o que é a morte em vida, o que é a morte?; o que é santo, o que é santo justiceiro, o que é justiceiro?; o que é messianismo, o que é cangaço, o que é cangaço messiânico? Na visita a esse mundo de estranhas contorções, onde transita patético Antônio das Mortes (Maurício do Valle), um casal (Manoel e Rosa / Geraldo Del Rey e Yoná Magalhães) sai de uma fazenda e adentra pelas travessias do sertão. Em Monte Santo, Manoel é convertido fanático religioso do deus-negro beato Sebastião (Lídio Silva). Este prega aos pobres que o homem não pode ser escravo do homem. Anuncia que vai cair do sol uma chuva de ouro, e que vão descer anjos com espadas de fogo anunciando o dia da partida, pois o homem tem de deixar a terra que não é dele e buscar a terra verde do céu . Morto o beato, Manoel faz travessia pro lado oposto: conhece Corisco (Othon Bastos), que implantou o inferno da vingança na terra. Igualmente ritualístico e cruel, reza a oração do corpo fechado: “eu, José, com a espada de Abraão serei coberto, com o leite da Virgem serei borrifado, com o sangue de Cristo serei batizado, na arca de Noé serei guardado, com a chave de S. Pedro serei fechado, onde não me possam ver, ferir e matar, nem o sangue do meu corpo vão tirar”. Corisco convida o vaqueiro Manoel a seguir consigo, ao encontro da morte anunciada: Antônio das Mortes.

Nos grandes espaços imóveis do sertão, a câmera de Glauber gira incessante, num rito de personagens, e giros que vão enlaçando os lados da mesma medalha: o bem e o mal. Só há um movimento horizontal e reto: a câmera acompanha Manoel e Rosa que fogem, em linha reta, no desespero da esperança, em travessia. Nem o mar virou sertão, nem o sertão virou mar. Correm, tropeçam, e chegam à orla doutro infinito: o mar. Outro rito se anuncia. E este é o repentino fim. “Deus e o Diabo” acaba de sair em extraordinária edição em DVD. Num depoimento especial, dona Lúcia, a primeira luz que é mãe de Glauber, conta emocionada: “Quando ele estava no caixão, indo embora, eu disse: cê não vai embora, porque artista não morre. Artista mesmo só vai embora quando a gente deixa.” Faz justiça, e grande homenagem ao Cinema Brasileiro.

___________

Romildo Sant’Anna, livre-docente, escritor, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’

PORTUGAL