A FLOR 
QUE ENFEITA A MORTE

Em pesadelos, vejo o triunfo da calamidade e da cegueira. Esqueletos armados de foice avançam em meio ao pó da natureza em tempestade. Nos confins desérticos, lunáticos, apocalíticos, esses tanques de aço rangem turbinas, catracas e esteiras, e soerguem seus talos da flor que enfeita a morte. Na ventania, falcões negros lhes fazem a vanguarda, convulsos, rodopiando hélices e metralhas, e alevantando do chão o mormaço revolto dos insultos. Mísseis teleguiados lhes abrem alas, acendendo lá na frente a pira funesta da destruição e morticínio. Em formação militar e arautos do extermínio, investem como colheitadeiras e arados das planícies estéreis, corrompendo alianças e esmigalhando caules da concórdia e civilização. Em pesadelos, vejo a flor que enfeita a morte, vestígio turvo e covarde, horror de nosso tempo.

A flor que enfeita a morte tem feições da mesma morte, e o cheiro enfadonho da morte, no ritual da demência. Põe cercadura tão funesta ao que é morto, que já nem é a flor dos campos, irradiando primaveras, liberando a juventude e o que ficou do éden, mas extensão enferma do que ali jaz, solitário, impenetrável, no armário musguento dos mistérios. A flor que enfeita a morte, como a usina de seus canhões em colunas e fileiras, ofusca os lampejos de luz, esperança e milagres da ressurreição. A flor que enfeita a morte são sementes aflitas no vaso trincado de um poeta Baudelaire; são sombras de meninas inexatas, mulheres alteradas, radioativas, sem cor nem perfume, sem rumo nem excitação, nem o germe da procriação, na arquitetura sonora de Vinícius de Moraes. São flores que se alevantam no tumulto dos mísseis de plutônio, e explodem e ardem urros de pupilas assaltadas, vultos errantes e contorcidos, na orgia tecnológica dos orgulhos, castelo da cobiça e covardia.

Ah, desafortunadamente, eu vivo num tempo sombrio – exclamamos com Brecht, na devastação da guerra –, vendo as ruas irem dar na podridão dos atoleiros. E perguntaríamos: que tempo é esse em que uma conversa sobre árvores é quase um despropósito, pois implica silenciar sobre os tantos crimes? Esses desatinos, com a cor e o odor do sangue pisado, são clones das flores que enfeitam e põem moldura na campa da morte, anunciada por infelizes ditadores, ordenanças e pelotões de guerra.

A morte anunciada pela guerra campeia como lobos por desertos infelizes, e põe seus ovos no intestino dos tiranos. Sua imagem são estandartes do infortúnio em que vivemos. Falsificadora da morte como extensão natural da vida, a guerra ri louca em seu funesto triunfo. Investe por atacado, em ondas de fogo, uivos e devastação. Não produz a morte apregoada pelos deuses, que exaure com o tempo e une justos e injustos, rigorosos e compassivos, no ciclo harmonioso, cumpridor e ordeiro, do começo e todo fim. A morte, única certeza e paradoxo do maior enigma do existir, é rito de passagem, preâmbulo da vida, como a vida é prelúdio da morte. Na inevitabilidade de que tudo tem seu fim, encarna o elo transitório da existência mortal ao sonho descomunal de ser eterno. Nos pregões líricos de um Pessoa poeta, a velha morte nos beija na fronte, em gesto materno afagando, e acalma silenciosamente o som dos burburinhos. Contudo, há outra sina de morrer, a infame. As guerras modernas e pós-modernas produzem a morte sem o atestado de óbito da natureza; são mesquinhas e corrosivas, porque anulam a esperança, poesia do existir e do próprio morrer. A morte anunciada pela mão suja da guerra não corrompe somente a vida, da qual subverte a essência, mas desengata a humanidade de sua evolução sublime para a morte. Faz o milagre da vida escorrer por passagens descendentes e pelo musgo dos becos mais infectos. Essa guerra despeja-nos no caldeirão das trevas, em pavilhões sombrios e gelados, onde floresce a flor que se enfeita com a morte. E faz rir por último o estigma da insensatez, que se afeiçoa e adere à vastidão escura e desumana do aniquilamento e do nada. Nos ermos baixos dos instintos, brotam flores que se enfeitam da sujeira, para enfeitar a guerra.

Assim passamos o tempo que nos é concedido. Quando pegarem o prontuário de nossas tragédias, imploramos desde já, envergonhados, lembrando outra vez de Brecht: vocês que vão nascer do pesadelo em que nos afogamos, quando chegar a ocasião de ser o homem um parceiro para o homem, esqueçam a nossa baixeza e se lembrem de nós com muita pena. E, se possível, com alguma simpatia.

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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.

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