FILME ANTIGO

Consta que o making of de certos filmes chega a ser mais pitoresco e interessante que o próprio filme acabado. Uma câmera por detrás das câmeras registra as peripécias e agruras do diretor, atores e técnicos para realizar a magia do que vemos na tela. Tal aconteceu no documentário de “Fitzcarraldo” (1982) de Werner Herzog. Imagine, entre tantas cenas, o ator Klaus Kinski espaventando a lama e a malária na filmagem de um navio transpassando o topo de uma montanha. Surrealismo? Tudo porque um ego elefantino decidiu construir um Teatro de Ópera no coração da Amazônia. Estávamos no início do século 20, época em que os senhores da borracha costumavam acender seus charutos com notas de dólares.

Os momentos criativos de um roteiro devem ser igualmente alucinantes, já que, como tudo em cinema, embarca-se numa viagem. É no roteiro que nasce um filme, como sonho de papel. Imaginemos – repito – os roteiristas matutando o script de “Luar sobre Parador” (Moon Over Parador, 1988), de Paul Mazursky. O filme foi ambientado em Ouro Preto, local que serviu de locação para uma dessas tão comuns republiquetas latino-americanas. De imediato, pensariam em quem seria o Presidente do imaginário Parador. Vestiria a faixa presidencial um prócer do coronelismo agrário de nome pomposo, tradicional: Alphonse Simms. Seria zarolho, de punhos retensos, como que a enviar ao povo o mais significativo dos símbolos pátrios: uma banana. De resto, era só soltar a imaginação ou, mais simples, abrir os olhos à realidade.

Como realizariam o roteiro de uma farsa tragicômica, o ditador Alphonse (interpretado por Richard Dreyfuss) teria que ser bizarro, canhestro, mas com relampejos de ditador sisudo, a impor a autoridade que, certa vez, Caetano Veloso identificou como a dos “ridículos tiranos”. Disciplinado, deveria acostumar-se com a prótese axilar de um livro em inglês, escrito por economista de Wall Street – peça fundamental à imagem de um estadista integrado e moderno. Másculo, pero no mucho, teria que praticar esportes exóticos, e até mesmo rasteiras corridas com carrinhos de rolimãs. É que a população de Parador, espelhada nos altos escalões da república, deveria abandonar a vida sedentária com vistas a eliminar complicações psicomotoras, enfartos do miocárdio, colapsos de memória, má sorte na loteria, resguardando-se, ainda, contra as tradicionais disenterias amebianas.

O aconchego palaciano deveria incluir odaliscas da tevê, craques da seleção, e a velha mãe a esgoelar disparates sobre as peraltices do filho e vociferar descomposturas à criadagem: “Cuidado com os meus Diors, seus cretinos”. Quanto à trupe ministerial, sem novidades: os big brothers de sempre, porque os mercados internos e internacionais poderiam se assustar com a mudança repentina, aumentando a cotação do dólar e fazendo despencar os índices da bolsa. De modo que os ministros seriam naturalmente rotineiros e espertos. Um, pelo menos, seria versado em arrecadar fundos em campanhas eleitorais; haveria outro com certa inclinação às escutas telefônicas, com vistas a elaborar dossiês dos adversários, além dos cleptomaníacos, com traquejo inato para apagar os rastros do dinheiro de Parador destinado aos bancos da Suíça e paraísos fiscais.

O partido político seria único, para evitar confusões ideológicas, mas com abertura democrática às sublegendas. Por exemplo, poderia haver a sublegenda azul, verde, laranja e até vermelha. Já o povo, horda inculta, desorganizada e figurante, deveria prefigurar gabirus de Portinari e heróis de Mazzaropi. A ordem máxima em Parador seria a modernidade: obediência a Metrópolis, privatização das empresas públicas e abertura às seduções importadas, sem distinção entre Chapeléns, Chapolins e Gremlins em geral. E, para incendiar o patriotismo da plebe rude, gravar-se-ia o novo hino de Parador, mais alegre e de fácil assimilação. Algo melífluo como “Bésame Mucho”, ou mesmo um clássico popular, desses que revelam enfim “este coqueiro que dá coco”.

“Luar sobre Parador”, realizado há menos de 15 anos, parece filme antigo, realismo mágico num museu carcomido, luar embaçado de um outro país. E, em ano de eleições, espera-se que, para a dor, encontre os seus melhorais. E que assim seja.
______________________

Romildo Sant'Anna, escritor, prêmio 'Casa das Américas' (Havana), é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' - São José do Rio Preto, Brasil.

PORTUGAL