ROMILDO
SANT'ANNA

Fala, Luiz!

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Os derrotistas comentam que Lula vai acabar com o Brasil. Invertendo a frase, Carlos Heitor Cony escreveu que “o Brasil vai acabar com Lula”. Tão e quanto pessimista, afirmo que Lula acaba com Lula. Isto tem seu marco: renegando a evidência de si e sua história, declarou que nunca fora um militante de esquerda. Se o último Fernando, aparado pelo glamour cosmopolita, beletrista e acadêmico, pediu que esquecêssemos do que escreveu, Lula reacende a tradição ágrafa e singela da oralidade e conclama, nas linhas tortas de atos e palavras, a que esqueçamos do que falou. E segue dilapidando a si na procura de outro, maquinado por novos e refeitos acompanhantes, outros dogmas e ornamentos. Dia desses, impressionados, jornalistas o indagaram se ele sente que efetivamente governa. A resposta foi lacônica e de um sentimentalismo paternal estonteante: “Eu cuido do Brasil!” Oh, sinistro dos sinistros! Desvenda-se o estadista que parece não ser, e a encarnação do pai que não é.

No centro do poder, Lula fala e fala, e a palavra flui deliciada, cambeteando tosca e improvisa. Discursa descabido, em deslumbrada incontinência retórica. Logo que assentou em palácio, e com o arroubo da euforia que acinzenta a modéstia, declarou: “Eu vou ensinar este país como se faz política”. E, em churrascada recente com parlamentares da sigla trabalhista, o PTB!, salientando-se como quem ronca vantagens, estufou o peito e blefou: “Um dia acordei invocado e liguei pro Bush!”. Que decidido feito! Decerto quis participar aos nobres representantes do povo que o bestial George, enfim, viu-se chamado às falas! Mas, em que idioma?

Messiânico, como que no enlevo altíssimo da montanha, e dirigindo-se à plebe por metáforas, comparações, alegorias e parábolas, o companheiro disserta sobre direito tributário, filosofia da educação, arranjos florais, fome no mundo, dialética da dominação, ética jornalística, o mistério dos sarcófagos, música sertaneja, heranças malditas, ciências contábeis, aeronáuticas, e peladas. Outro dia, untando o todo-poderoso às ilações econômicas, e fervilhado num labirinto de imagens, proclamou: “Mas a natureza, quando Deus fez o mundo – porque naquele tempo não tinha inflação –, ele não mediu esforços pra fazer investimentos e coisas boas no Brasil”. Sobre pescarias no Amazonas, formulou o seguinte silogismo, prenhe de premissas e sinuosas deduções: “Os americanos estão indo pescar no Estado, pesca esportiva, ou seja, pesca e solta o peixe. E depois vem o brasileiro, pesca o peixe e come. Mas de qualquer forma, é importante que eles continuem pescando e soltando para que o brasileiro possa pescar e comer, porque nós temos mais necessidade que eles”. Até o caudal silencioso de um rio, multiplicando peixes, vê-se metido no pregão do “fome zero”.

O presidente reconstrói seu estilo e faz, do desabrido, exótico e simplório, mais um ato da comédia republicana. Em recente conferência sobre turismo, exortou a imprensa a dizer coisas boas do país. E calculou, penetrando veredas do subconsciente estrangeiro: “Se nós passarmos imagens negativas, se nós passarmos violência (...), o cidadão pode estar arrumando a mala e dizendo: ‘olha, vamos dar uma volta no Brasil'. Ligou um canal de televisão e viu 10% da violência transmitida, e ele fala: espera aí, não é mais para o Brasil”. E, num torneio comparativo e bizarro de palavras, recomendou como os jornalistas devem mostrar o país. Para tanto, recorreu ao ethos pós-moderno do ser e parecer no mundo, ou à máxima pirandelliana do “assim é se lhe parece”. E proferiu sentencial alegoria: “Da mesma forma que o homem se arruma pra sair de casa, ele não se arruma pra ele mesmo, ele se arruma pra alguém, pros outros virem que ele está arrumado. Da mesma forma que uma mulher quando se troca pra sair não se troca pra ela, mas pra que alguém note que ela está sendo importante pros olhos de quem a vê”.

Passa o tempo e tanta gente a trabalhar... Lula-lá, com sinceridade... desnuda-se do que foi, sucumbido no negativo de si. Quando lá chegou, fiz-lhe uma crônica: “E agora, Luiz?”. Um tanto receoso, assuntava a interrogação do poeta Drummond, lírico e comovente. Já não indago ninguém, nem a mim. Miragem lontana, tenho impressão de que tal Lula nunca existira. Ou fora eu, fôramos nós, bárbaros invasores, engolidos na quimera, que nunca estivemos aqui. Eu assim, provido de um passado de utopias, erradio, pesaroso e zombado. Na esperança... alçando vôos. E agora?

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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.