ELEONOR RIGHBY
NO SOLO SAGRADO

Diógenes Fonfon, cabelos negros e oleosos, olhos de pedra azul, adquiriu alcunha por apalpar a enteada em lua cheia. Se, sob juramento, o Dr. Vicente clamou a inocência da forma de carinho e pureza de alma, sendo-lhe a intenção não praticar o atentado violento ao pudor, mas examinar contra o terrível câncer da mama, a outra lei do costume dos homens do Cristo Rei, inclemente e cega, o condenou. Ele fez pouca vergonha. E, assim, o vulgo lascivo do boteco, em tardes de cachaça e cerveja, passou a chamá-lo de Fonfon, o Diabo Azul, entre a vileza da maledicência, o escárnio e a descompostura.

É certo que nos primeiros dias do ocorrido tudo eram glórias e gozação. Pensou-se que o tempo aplacaria o agouro do boato; chegou a sentir-se herói atrevido, mulherengo pra chuchu. Mas Eleonor emagreceu de tanto apanhar do pai largado da mãe, ficou endemoniada. Deu para recolher o arroz na porta da igreja, após os casamentos, chorando lágrimas por todas as direções do vento. “De onde vêm tantos corações solitários? Aonde vão tantos corações amargos?”, ela resmungava. E foi por isto que Diógenes recebeu no lado da cara a marca turva da maldade. Foi torturado e torturado por toda raça de gente. Sujeito problemático. Até que comentou que ia mudar de lar e profissão, o que lhe acrescentou a desgraça de réu confesso.

No Solo Sagrado, há duzentos e treze dias do infausto, suspirou alívios, renasceu-lhe o brilho claro dos olhos, e o bom nome que sempre teve. Recolhido, mas vigilante nas armadilhas do mundo, amorteceu-lhe a fama de mulherengo. Ajudava sem prática em aros e rodas, a troco de seis contos por dia, ordeiro, positivo e cumpridor. Dormia na borracharia, numa cama de campanha, ao lado de Guspe, o cão da raça Cofápi. Era a portinha e ganha-pão do mano velho William. Às vezes proseavam conversa fiada sobre os bons tempos. Quando o movimento aumentava, a cunhada levava o de comer, sendo que ela e o anjo de seis anos detestavam o cheiro amargo dos pneus, tinham ânsias de vômito, estômago embrulhado.

A câmara de ar na banheira descascada e porca mortificava de treva a alma de Diógenes. Era chamamento do passado que latia como cão à míngua, esconjurado. Enfiava-se no escuro da borracharia, espinho de sardinha frita na garganta. Sem dar ao menos uma volta, a vida eram calor e pensamento ruim. Deram conselho que fosse à Igreja Quadrangular, mas desistiu. Até que numa lua nova a cunhada veio machucada no punho. O anjo ficara em casa, no berço. Contou em lágrimas que cortou o braço na lata de pomarola. Mas tudo era claro como a lua cheia: foi surrada pelo marido William por causa do batom. Dió lambeu-lhe o machucado, como lhe ensinara a finada mãe.

“Ela disse que viu o céu no meu olhar!”, justificou para si. E despejando-lhe o raio que derruba em tentação, deu o beijo na cunhada, com sabor de cana vagabunda entre as bocas. E apalpou-lhe os peitos, por cima do sutiã. Foi um berreiro de mal-entendidos; o cão resmungou da sem-vergonhice. Diógenes sentiu outra vez bem lá no fundo a dor que dói como o pecado. No solo sagrado da cabana de zinco sufocada, e resmungando o nome da menina enteada do Cristo Rei, trepou desequilibrado na caixa de madeira e deitou as costas no ferro oval da prensa de vulcanizar pneus. “Deus te proteja de mim, agora e sempre”, ia resmungando. A mão arvorada ligou a força sem dó. E, esquentando, esquentando, apertando, apertando o volante de aço no giro imenso, os olhos azuis sangraram, ficaram negros desencarnados. A cara era imagem de feiúra, fumegante boca, assustadas rugas. Treva na alma, o ferro em brasa estourou-lhe o peito e, na fúria, queimou-lhe o coração.

Defronte da borracharia, à janela, um padre velho e branquinho costurava suas meias. O disco enguiçou nos violinos de Eleonor Righby, que ele ouvia todo o dia. A repetição nervosa lembrava o trem de carga na baixada, que nunca tinha fim. Mas o padre tinha na alma a calma dos mosteiros. Todas as pessoas solitárias, de onde elas são, pra onde elas vão?, só pensava.

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Romildo Sant’Anna, doutor e livre-docente, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’