"História Universal da Infâmia" é um belo livro de Jorge Luis Borges. O conteúdo dos vários textos que o compõem revelam que, em apreço às infindas expressões de beleza, heroísmos e conquistas, falibilidades e desconsolos da humanidade, a historiografia é o lastro de nosso estar no mundo. Faz do degredado filho da terra a criatura que somos, e que não se extingue no pó donde viemos. Por isto, e por infinitas causas, as páginas da história não podem ser arrancadas das entrelinhas da existência. Mesmo que nalgumas delas medrem o sangue, a covardia, desumanidade e infâmia.
Para o desespero e a dor de Marias e Clarices, e mães, e esposas, e descendentes, e amigos, os jornais mostraram nestes dias três supostos retratos do jornalista Vladimir Herzog. O personagem aparece nu, cabisbaixo e abatido. Se fossem mesmo de Herzog, teriam sido tirados em 25 de outubro de 75, momentos antes de ir à sala de torturas nas instalações do Doi-Codi de São Paulo - o terrível órgão repressor da ditadura. Alarmado com a publicação, o atual comandante do exército declarou em nota oficial que "as medidas tomadas pelas Forças Legais foram uma legítima resposta à violência dos que recusaram o diálogo, optaram pelo radicalismo e pela ilegalidade, e tomaram a iniciativa de pegar em armas e desencadear ações criminosas". Tantos anos se passaram e a nota do comandante parece interpretar vozes adormecidas em casernas, alevantando-se pra acobertar mãos ferozes e corações enlouquecidos que, à época, infestavam delegacias e quartéis. Quem como eu sobreviveu àqueles tempos sabe que opositores ao regime não eram convidados "ao diálogo"; tampouco se acredita que o jornalista tenha pegado em qualquer arma, senão que a razão libertária das palavras. Indefeso numa sala em cujas paredes, inda hoje, escorre o escarro da vileza e janelas urram de dor, nada legitima o que lhe fizeram, e a outros. Ante a reação da sociedade à referida nota, e levado a corrigir-se, o mesmo comandante voltou para afirmar que "lamenta a morte de Herzog", e que não devemos "ficar reavivando fatos de um passado trágico que ocorreram no Brasil". Correto, é doentio remoer ressentimentos! Mas, para o aprendizado do futuro na historiografia de nós, é erro ocultar o mal que os homens fazem.
Tenho cópia do filme-reportagem "T", de Luís Alberto Pereira, talvez inédito inda hoje. Enfoca a descoberta, em 4 de setembro de 1990, de mais de mil cadáveres sepultados em valas clandestinas no Cemitério Dom Bosco, em Perus. Ah, quantas Clarices e filhos de Clarices choram seus desaparecidos sob a crueldade da tortura! O filme entrevista Lula, o líder sindical e partidário que, horrorizado diante de tantas ossadas ignotas, afirma: "Para nós, o compromisso com a verdade é prioritário. É preciso explicar à nação o que aconteceu. É preciso desvendar mistérios de crimes cometidos contra a pessoa, restabelecer um lado da história que o regime autoritário não contou".
Faz 40 anos que se deflagrou no país a ditadura de 64. E muito do que aconteceu permanece no esconderijo das mentes e registros secretos. Apagando as luzes de seu gabinete, o presidente Fernando Henrique assinou o decreto 4.553 que, a pretexto de regulamentar a Lei dos Arquivos, permite que certos documentos permaneçam eternamente em sigilo. Contestada a ilegalidade, pois um decreto não se sobrepõe à lei, o recém-empossado presidente Lula considerou prudente deixá-lo em vigência, pois é bom "não ficar reavivando fatos de um passado trágico" da nação. Uma omissão grave perambula os nossos dias e proíbe de escrever a nossa própria história. À sombra da incerteza, inda choram esposas Clarices, ao relance dos porta-retratos. Mesmo acreditando que "uma dor assim pungente, não há de ser inutilmente", elas sofrem o pesadelo insepulto de uma verdade amputada. Patética, uma esperança inda se equilibra "na corda-bamba de sombrinha". E, nós, bêbados, vagamos nas entrelinhas duma canção que falava de uma tarde - que caía feito um viaduto! -, como se ela não fora escrita nos idos de 70, mas numa escura noite da semana que passou.
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