O DONO DA NOITE

Roberto Sousa era emoção e integridade. Adverso às ambições da correria mundana, cultivava a compostura de parecer o que era: a imagem pura da pureza, que mal não almejava, só o bem. Tudo lhe era sumário, econômico: armadura escassa, rosto delgado, cabelo esticado em ondas para trás, e um olhar convicto irradiando brandura, a iluminar-lhe o caminho tolerante, sem pressa. Esse homem cabisbaixo, atemporal e solitário nem era um tipo, mas símbolo. Emoldurava-se em camisas de mangas curtas e riscadas, calças escuras e sapatos carcomidos, engraxados com capricho. Tudo emergia numa loja de produtos populares, com a altivez da humildade, colhido pela mão sóbria, reverente e limpa. Era austero na voz doce e compassada, no vocabulário e gestos dos que se fazem benquistos, e rígido no acato à verdade dos outros. Discotecário e dono de nada, uma noite aconchegante o elegeu dono. E dessa comunhão, veio a ser, legítimo, o Dono da Noite.

Em seu programa de rádio, falava com a gravidade de quem pronunciava o hino sobre os amores da vida. Nesse acorde se passaram 40 anos, ele, a noite, um microfone e um romantismo sem fim. Em sua liberação inconsciente, sua arte era encarnação da feminilidade compartilhada por homens e mulheres. O repertório de músicas que dedicava aos “queridos radiouvintes”, ou que estes se ofertavam entre si, evocava a plenitude das virtudes, a paixão pelos encantos de existir, a aspiração e realização dos amores, sublimes encontros e reconciliações. Por meio de “páginas musicais” sempre lânguidas e brasileiras, os ouvintes e o próprio locutor aspiravam, nas entrelinhas, a negação de ser másculo, machista: tudo eram sonhos, confidências e docilidades. E, nessa concepção de um radialismo crioulo, Sousa resistiu às pedreiras do tempo, como resiste, ainda que submersa, a identidade emotiva de seu povo.

O Dono da Noite não escondia preferências. Seu radialismo era uma elegia à mulher, tão idealizada que se fazia real, em canções de Orlando Silva, Chico Alves, Carlos Galhardo, Sílvio Caldas e Nélson Gonçalves. Na transfiguração nostálgica desses artistas, a companheira era “divina e graciosa, estátua majestosa do amor, por Deus esculturada”. A mulher era de fato e por direito uma escultura em corpo e alma: “E assim, de retalho em retalho / terminei o meu trabalho, o meu sonho de escultor. / E quando cheguei ao fim / sinto diante de mim / você, só você, meu amor”. Cantores seresteiros e apaixonados, evocavam-nas: “A deusa da minha rua / tem os olhos onde a lua / costuma se embriagar. / Nos seus olhos, eu suponho, / que o sol num doirado sonho, / vai claridade buscar.” Os grupos que acompanhavam esses artistas tinham nomes fanfarrões e boêmios, entre o pecado e a santidade. Eram os Anjos do Inferno, os Diabos do Céu, o Bando da Lua. Enlevado por sublime devaneio, confessava o cantor: “Eu sonhei que tu estavas tão linda / numa festa de raro esplendor / teu vestido de baile, lembro ainda / era branco, todo branco, meu amor”. E, a ternura do poeta declarava, repetidamente: “Eu sei que vou te amar, / por toda minha vida, eu vou te amar / e em cada despedida, eu vou te amar, / desesperadamente, eu sei que vou te amar...”

Sem Roberto Sousa, os tempos ficaram outros: negócio é negócio, e a amizade que procure outro lugar. Ele se retirou, ou o retiraram. No mesmo horário da noite, uma percussão intestina tomou o lugar das plangentes melodias. E jovens DJs a denominam funks e pauleiras em geral. Falam agora de outras doidivanas, garotas e mulheres liberadas e – dizem –, até mais felizes. O romantismo murchou e, sem partilha... agoniza. As relações são de consumo imediato, na base do olho por dente; já não se namora: fica-se, pois o uso do outro equivale a seu valor de troca. A grosseria civil avolumou-se desumana, pois, se descobriu, “um tapinha não dói”. E esbraveja um desses lúmpens de voz tosca e sotaque retardado: “Tchutchuca, vem aqui com o seu Tigrão! / Vou te jogar na cama / e te dar muita pressão!” Por meio de um tambor eletrodigital, a mulher é assim ordenada: “Abre as pernas, faz beicinho, / vou morder o teu grelinho. / Vem menina, não se espanta, / vou gozar na tua garganta!” O rádio, recatado e constrangido, se desligou; uma noite órfã segue nostálgica, lamentando o dono que se foi. Sousa não morreu, nós é que o deixamos desaparecer, não insistimos para que ficasse. Caboclinho esperto, esfumou-se no infinito, e se livrou de ser moderno. (Arnulfo de Souza Freire, de nome artístico Roberto Sousa, 1933-1995).
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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.

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