|
|||||||||||
Entre tantos reconhecimentos como fazedora artística, Dinorath do Valle recebeu o ambicionado “Prêmio Intercultural de Cine e Vídeo”, outorgado pela Fundação Rockfeller (Chicago) e Fundação MacArthur (Nova Iorque). Refere-se ao argumento de Héteros, a Comédia (1998), transformado no filme laureado no Brasil e exterior, e feito a quatro mãos com seu marido, o médico e cineasta baiano Fernando Bélens. A parceria rendeu também Pixaim (2000), obra de comovente lirismo e fina penetração etnocultural, aplaudida no Festival do Cinema de Brasília e obtido o prêmio do júri de Melhor Filme, concedido pela Unesco. Mas, para as letras brasileiras, é de grande importância a inclusão da escritora e seu conto “Canguçu” (livro Vestido Amarelo , Editora Artenova, 1976), no “ Vozes Urbanas no Conto Brasileiro Contemporâneo ” ( Urban Voices Contemporary Short Stories from Brazil – University Press of América, 1998). O conto faz parte de um livro que mereceu o Prêmio Governador do Estado, 1971. Traduzida para o inglês, ao lado de autores como Roberto Drummond, Hilda Hilst, Moacyr Scliar e Rubem Fonseca, consolida o reconhecimento de Dinorath nas Américas, agora por críticos e chancela da Universidade do Texas. Na tradução de Adria Frizzi, a antologia abriu campo a nova visibilidade internacional, sendo referência do que de melhor se produz atualmente no Brasil em matéria de contos. “Canguçu” não é somente outra narrativa; tampouco mais uma antologia de que Dinorath participa. Pinçado entre seus contos e romances, configura u'a mostra essencial e representativa de seus temas e estilo. Assim, o conjunto literário da escritora se emoldura refletindo-se nesse expressivo conto. Nele, como se fosse uma copilação documentária, mostra-se que a história brasileira, em sua corrente de descaminhos, teima em regredir: a riqueza material de uns se sobrepõe funesta à indigência da maioria; as lutas sociais se desvanecem na volúpia dos interesses e oportunidades políticas. Como mais um texto visceral da escritora, “Canguçu” desvela a raiz fundamental brasileira. Sintetiza uma ação literária engajada, afetiva e irônica, a sorver a realidade histórica, transformando-a em arte. O conto inicia-se com a gênese de uma cidade, seus ritos, vícios, lendas, crenças, padroeiros e coronéis. Atualiza o paradoxo latino-americano de calçadas com homens descalços, mercados cheios de pessoas vazias, e o canibalismo metafórico de cidadãos de bons modos dizimadores de índios. Tomando como modelo um cidadão desatinado que perambulava pelas ruas de Rio Preto (Canguçu, o rei da mata), localiza ao enredo numa noite, à saída dum cinema. O filme que se acabou de ver, ou donde o narrador parece ter saído, é uma realização de Walt Disney. Ali, “a maravilha teimou em maravilhar”, escreve Dinorath. Em devolteios, o narrador acorda dum sonho cinematográfico e adentra o lado de fora, o mundo provinciano e mestiço de uma cidade qualquer. Lá está o personagem, devaneante, enlouquecido e fazendo proezas, na atmosfera impressionista e tênue da noite. Nessa cidade, o paradoxo: o surrealismo, em vez de sonho, é palpável. É o ser brasileiro em estado de representação, num realismo mágico a simbolizar a senda patética do povo desatentido, discriminado e incriminado por ser pobre. “Desvestindo o cinema” ilusionista, que faz do circo o próprio pão, e vestindo a condição existencial da população humilde, o conto é simulacro da história, e sintetiza o compromisso social e estético da escritora. Dinorath obteve várias distinções no exterior. Com o romance Pau Brasil , também traduzido ao castelhano, recebeu o “Premio Casa de las Américas (La Habana, 1982) – a mais importante honraria concedida a um escritor na parte hispânica do continente. Porém, figurar em antologia dos dezoito melhores contistas brasileiros contemporâneos é de um significado esplêndido. O conto “Ganguçu”, entremeando imaginação, crônica e realidade, homogeneiza-se com o filão mais expressivo da escritora. É metáfora da multidão informe que veio da roça, se fez boiada e naufragou no eito de descaminhadas ruas. Delineia a agonia de brasileiros exclusos e pesarosos, e que murmuram acalantos, na noite de todo o dia, véspera imaginária da manhã feliz. |
|||||||||||
|