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A sensibilidade artística, o jeito doce de acariciar as palavras, o tino guerreiro pelas causas da justiça social e da democracia, a capacidade de vislumbrar melhores caminhos pelas veredas da cultura e da arte foram se despertando em mim graças a Dinorath do Valle. No final dos anos 50, a nossa mãe lia para nós, iluminados pela lamparina, uma tira comprida do jornal “O Estado de S. Paulo”. Era um conto comovente, cheio de ensinamentos da vida vivida mesmo: “A Cartilha”. Era a Dinorath saindo num jornal grande, lá de São Paulo. Lido em voz alta, eram toques que nos encantavam e nos uniam, num sentimento de beleza, redenção e aviso de que uma cartilha deve ser sublime. Nosso mundo, um bibelô encardido, era visitado pelo coração sensível e de mansinho, para a emoção diária que gostávamos de ter. Esse conto saiu no livro O Vestido Amarelo , que ganhou o prêmio Governador do Estado. Às vezes, a gente via a Dinorath pessoalmente, quando no Cine Boa Vista passavam os seriados do “Batman” e “Os Perigos de Nioka”. Entrevistei-a em 1967, para a coluna que eu escrevia no Diário da Região . Confesso que me senti um garoto importante: minha cartilha em vida se dispunha a dialogar diretamente comigo. Em meio a tanta admiração e amizade, sempre pensei Dinorath do Valle como arte-educadora, na laboriosa lida de ensinar. Como mulher engajada nos movimentos sociais, é redundância ressaltar seu papel na formação humanística de milhares de pessoas, do abastado ao mais humilde. Nos anos 60, plantava afetividade e poesia, ao revelar que o cotidiano poderia ser belo, nas Crônicas do Dia , pela rádio. As livrarias do Brasil, mais ainda, distribuíam seus livros de desenhos técnicos e artísticos Arte Infantil na Escola Primária (1961), livros de desenhos pedagógicos como o Desenho Pedagógico de Animais (1970), reconhecidos como pioneiros em arte-educação na América Latina. Voltando à terra, escreveu História de Rio Preto para Crianças (69) e, deixando exprimir sua capacidade visionária, publicava páginas semanais no Diário da Região voltadas à educação infanto-juvenil. Estávamos nos anos de 1960. Eram desenhos, questões educativas com pleno propósito interativo, fomentando idéias e estimulando a sensibilidade de filhos e pais. Promovendo uma espécie de “alfabetização da imagem”, estimulava na criança a técnica do desenho como forma completiva da linguagem oral e escrita. Levando seus leitores a expressar-se pelo desenho, já naquele tempo, antevia o quanto viríamos a ser bloqueados e, ao mesmo tempo, orientados pelas imagens veiculadas pela mídia eletrônica. A pleno vapor, escrevia simultaneamente textos narrativos e roteiros para os 86 cinejornais da Cometa Filmes, exibidos nos cinemas de toda a região, para orgulho e estima de todos nós os caipiras. Dinorath, a provedora de uma Casa de Cultura, nunca parou de escrever. E não viu escrita sua última página no Diário . Enfocou o trabalho, pra descansou no Dia do Trabalhador. Era seu merecimento. Foram assim seus romances, novelas, roteiros de cinema e peças de teatro, frutos de intensa imaginação, sensibilidade e trabalho. Conquistou os melhores prêmios no Brasil; ganhou o prêmio maior da América Latina, em Cuba, num governo pra maioria; publicou contos na Europa carrancuda e na América esnobe. Perseguindo o comovente na doçura infantil, deselitiza o texto para emergir sua principal matéria sensível: a existência, seus transtornos e magias. Mesmo eremita, nos últimos anos, mas sempre rija, na plenitude de quem sabe fazer e faz saber, recopilava as ninharias do cotidiano, e escrevia no jornal flagrantes da história da cidade. Realizava há tempos o que veio a denominar-se a ciência da “Nova História”, arremetendo-se e remetendo o leitor às outras histórias, em dimensão nem sempre confirmada pela História Oficial. Despejava seu olhar refinado em cada enfoque, transcrevia cartas e fotos, re-entendia-os nas teias de enredos e segredos. E os devolvia em forma de pequenos causos, numa colcha de retalhos que, se não me engano, é a compreensão do ser no mundo, sem premeditações e maquiagens. Foi assim que publicou Jornais de Rio Preto 1903-1993 (94) e Monumento à Vida (97). Esta é uma pequena história do labor de uma pessoa visionária e imprescindível; da grandiosidade humana e linda mulher que, de professora, se fez artista e, como artista, nunca vai deixar de ser a professora. (Itápolis, 1926-Rio Preto, 2004). |
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