No desvão daqueles tempos os ambulantes eram pouco de feitiço, outro tanto calmaria, como sonhos. Impeliam seus carros e geringonças inventadas a partir da roda, tão pessoais que, em si, já se faziam atrações. De propriedade privada, só eram donos dos sinais com que se anunciavam à distância, por buzinas e matracas, e fraseados em tenor. Os sons que despontavam à quadra-e-meia permitiam o tempo justo a que freguesa buscasse o mango nalguma gaveta, ou a meninada se dispersasse, cada qual implorando o trocado para o sorvete de groselha e guloseima que fosse, a acrescentar mais doçura às correrias da infância. Ademais dos que traziam pão nosso e verdura diária, havia os prestadores de serviços, como a cigana do realejo e sua melodia de notas pungentes, extraídas no compasso de um fole acionado a manivela. Tudo se enfeixava em ares de saborosa agonia, e os augúrios eram pinçados por um lourico ladino e adivinhador, que retirava, do montão de papeizinhos, o presságio enraizado no presente, a florescer no futuro. Além do consertador das tralhas de cozinha, providencial e benquisto, despontava, volta-e-meia, o afiador de facas e tesouras, óculos de lentes pesadas que o deixavam com olhos de cabra e senhor de respeito. A engenhoca que empurrava fazia zunir a pedra em chispas, meticulosamente manuseada a troco de quase-nada.
Havia, de soslaio, as bancas paradas em trilhas de larga andança. Eram os adivinhos da precisão imediata: o bibelô, a presilha de cabelos, a cartela de agulhas, o trim e o bilboquê. Predestinados à camisa de um botão, carregavam nos ombros o peso dum antigo sacrilégio. Caras tristes e voltadas pra consigo, nem atinavam que há eras o Messias em fúria arrebentou-lhes seus tabuleiros e os expulsou da porta do templo. Ah, maldição de que só nossa mãe tinha notícias, e que me as revelava pra que eu notasse os efeitos do destino, nas armadilhas da vida!
Porém, afora os astros do cinema, as estrelas de meu tempo eram um tipo estridente de artista do povo, o vendedor eletrizante, camelô. Chegavam sei lá de que estação, abriam rodas e sinos dobravam. Falavam sem-fim nos eitos curvos das idéias, intercalando atenções a um lagarto dormindo na mala, e que saltava em piruetas e ria feito gente. Demonstravam à distinta platéia uma loção balsâmica que aliviava odores de todo tipo, verdadeiro milagre da fitoterapia amazônica, proibida a sete chaves pelas multinacionais. Ofereciam o ungüento filtrado nos mosteiros do Himalaia, de poder curativo não explicado pela ciência, e que dissolvia rugas, combatia a icterícia e crises asmáticas, além do alívio imediato à dor estomacal e inflamações da bexiga. Camelôs do meu tempo eram galantes e hipnóticos, áulicos na arte de vender, sugestionar e divertir. Faziam troça aos ingênuos, arrenegavam dos incrédulos, recitavam toda sorte de conhecimentos, que iam dos mistérios da alquimia à aritmética insondável do noves-fora. Entregavam seus potes à base de um por três e dois por cinco, entre a cascata de provérbios, o manancial de promessas e um eterno tiú amestrado a dormir fora da cena.
Sem teorias fordistas, estratégias de venda e inventivas no intrincado verbo mercantil, os camelôs eram altivos e soberbos. Entregavam por ninharia o prêt-à-porter que nos cingia em cambraias de ilusão. Não temiam a hora do rapa, nem davam canja ao fiscal da prefeitura. Tinham o povo no resguardo. Vagavam como a semente de sonho que nenhum não sabe donde veio, e fez sonhar. Aportavam nas ruas e se ancoravam nas lembranças. Inda os escuto em vozerios, e na glória de quem viu de perto o riso dum lagarto, fazendo-se herdeiro de uma fortuna impagável: as coisas simples da vida. |