ROMILDO
SANT'ANNA

Lembranças de Darcy

Há anos fui membro da banca de um mestrado sobre “Maíra” de Darcy Ribeiro. Ante a revelação de que a candidata não conseguira entrevistar-se com o escritor, observei: “A senhora deveria ter feito greve de fome defronte da casa dele. Porque Darcy não foi miragem, existiu em carne e osso, e a teria recebido como afetuoso cavalheiro”. Em verdade, revelei a frustração de nunca tê-lo sentido pessoalmente embora tanto o admirasse.

Em meio aos acontecimentos aflitivos e constrangedores que sucedem nos dias atuais, penso em Darcy com ternura. Recordo de sua metralha sensível de palavras, exuberância humanista de seus atos, a crença inabalável no povo e no país, a capacidade de despertar emoções tão singelas que às vezes nem as percebemos, senão, como diria Pessoa, “por uma diferença na alma”.

Lembro-me de sua última crônica no jornal. Aludia às imperfeições do Criador. “Estou morrendo por um erro de engenharia hidráulica”, brincou provocativo. “Nas mulheres, há um canal que realiza o trajeto de cada coisa; nos homens, o mesmo duto transporta xixi e esperma. Nesse cochilo de Deus, a causa do meu câncer” – asseverou, não sei se escorado nalguma ciência, figura literária ou senso de humor. Dias antes, ante a impostura da morte, fugira do hospital. Internou-se numa suíte de hotel em companhia mulherenga. E esperou, renitente, que lhe caísse a cortina da vida.

Em culminâncias dessa biografia, foi duas vezes ministro, senador da República. No Rio, implantou arrojados programas de educação a crianças carentes. Criou a Universidade de Brasília, o Parque Indígena do Xingu e tantas organizações internacionais de apoio aos aborígines. Assessorou estadistas estrangeiros, recebeu título de “Doutor Honoris Causa” em universidades do mundo. Viveu em malocas com indígenas donde sorveu redentoras lições sobre os sentidos da vida, os signos da natureza, “gentidade brasileira” e consciência nacional.

Darcy foi uma dessas pessoas que ultrapassam os contornos geopolíticos. “Maíra”, um dos romances mais originais do século 20, transporta-nos ao não-lugar e não-tempo indígena, recanto que não distingue a vida e o sobrenatural, o corpo físico e a arte. O correlato científico e religioso do destino, da morte e da beleza são seus estudos de antropologia. O romance “O Mulo”, quase desconhecido, emparelha-se a “Grande Sertão: Veredas”. O ensaio “Uma Introdução à Casa-grande & Senzala” é, num só tempo, ato generoso do autor e aguda dissecação intelectual de Gilberto Freyre. Lê-lo é um prazer que ultrapassa o histórico e nos coloca diante de portentosa alma: Darcy Ribeiro. O livro “O Processo Civilizatório” é monumento à gesta etnológica e cultural hispano-americana. “O Povo Brasileiro”, seu último grande fôlego, é plasmação duma existência sensível e obreira à rasgante e iluminada compreensão da história e alma duma gente deslumbrante, que comunga em muitos brasis.

O legado que deixou é rara fortuna; faz entender que a degeneração de hoje é tacanha frente às nossas virtudes. Dissipado desse agora, deleita-me imaginá-lo numa avenida, sorridente, o terno branco saudando em passarela. Batuques se arrefecem, reverentes, porque ele-em-vida foi escola, letrista, mestre-sala e bateria. Em saudade, invoco uma frase de Vinícius que indaga o irrespondível: “se foi pra desfazer, por que é que fez?” E me pergunto: em que país mais insosso estaríamos vivendo se Deus, em perfeição, não tivera concebido um Darcy, assim, moreno, Brasil!

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.