A ETNOPINTURA DE DANIEL FIRMINO

A precariedade elementar da voz daqueles que geralmente não têm voz e cumprem a sina da vida; o sutil refinamento do povo e seu jeito de interpretar o mundo pelos enigmas da cordialidade e paixão; a exuberância das cores primárias, a exprimir a plumagem de aves e o grito luminoso das matas tropicais; os traços primários do desenho lembrando a candura infantil; a mestiçagem e o sincretismo caboclo reacendendo a mundivisão do indígena e do negro como alicerces da civilização brasileira, tudo isto se pode contemplar na pintura naïf de Daniel Firmino da Silva.

Daniel conforma-se com o que já é, e segue os rumos de seu próprio grotão: sua arte primitiva. Não labuta pra ser “moderno”, pois possui a consciência atávica de que modernidade seria o caminho elementar de ser feliz, comungando-se as conquistas. Nele residem os pressupostos do modernismo brasileiro, esconjurados pela burguesia cafeeira de ontem e pela burguesia neoliberal de hoje. A arte de Daniel tem como viga o filho bastardo de algum europeu homem com mulher preta ou índia, e o encontro de mestiços, a fermentar a mistura de informações sangüíneas e etnias culturais brasileiras. Pintando o mundo da cidade com o estranhamento de quem um dia veio da roça (na determinação e eito do êxodo que, como fenômeno sociocultural, expulsou quem vivia no campo, pra explorá-lo na cidade), possui a robustez de morenos e mamelucos destemidos e arrojados, e o enlevo de morenas e caboclas sensuais e meigas, em subúrbios e ribanceiras distantes, reais ou imaginados.

Daniel Firmino é o faceiro, sorridente, cordial; é o que sente na cana destilada o melaço da consangüinidade. E embebeda pra esquecer e alegrar-se. É o quase-preto das eras em que se comunicava pelo rufar dos tambores; é quase-índio, das eras de um caipira taciturno, imprevidente; é a voz mestiça das eras em que se modelava o Brasil e dela brotava um Pedro Malazartes temperado ao molho pardo. Reflete o pensamento e a poesia dos “ninguéns”, como escreveria o antropólogo Darcy Ribeiro. Sua pintura é o espelho de si mesmo e sua vida no subúrbio: o futebol, as casas de prostituição, as manicures que enfeitam mãos domésticas, ornando-as com roupas de domingo, as inscrições pichadas nos muros, a pesca e a caçada aos marginais, as pessoas ermas sentadas no meio-fio, numa nebulosa esperança de amanhã, os tocadores de viola, o rapazito galante, efeminado, e a legião de filhos de carpinteiros. No pano de fundo de suas telas emerge a cidade imponente, no desenho mágico dos edifícios que aninham o poder e a riqueza. Tudo como se existisse um mundo que fosse dividido pelas dimensões dos que podem e têm direitos, e os que não podem e ficam a contemplá-los. Tudo na rusticidade condigna de uma “estética da fome”, precária, colorida e sonhadora, emitindo uma razão crítica sorridente e sarcástica a quem quiser enxergar.

Com esse tempero entranhado, misturando o sonho à realidade bruta, Firmino contorna os traços de sua gente, enchendo-os de umas cores que parecem que brotaram da terra e esvoaçam nos passarinhos, matas e flores, e no caldo de emoções e sentimentos étnicos que fizeram o Brasil. Ao impor-se como artista, arbitra o jogo do “que parece” na busca de uma só revelação: o ser existencial de sua gente. O refinamento pictórico de Daniel Firmino da Silva é o lado de lá de um Brasil que está aí, próximo, pulsante e relegado, representado pelas criaturas sofridas defronte da miséria, nos projetos de uma sociedade de vocação escravocrata: casarios modestos, mas luminosos, retilíneos, como se a cidadania ali não existisse, com paredes caiadas em azuis, de onde explodem frases em preto, incontidas e desgovernadas: “Jesus voltará”, “tô co saco cheio”, “vá tomar no cú”... na caligrafia passional, represada na garganta, sabida e debochada da maioria.

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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ – São José do Rio Preto – SP – Brasil.

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