CORPOS E NOMES
Forço por me lembrar do final de “Terra dos Homens”, de Antoine de Saint-Exupéry. Reconstruo a cena de memória. Europa, tempo de guerra, transgressões da fauna humana, miséria. O narrador espreita o interior de um vagão apinhado. São trabalhadores rústicos, roupas humildes e feições machucadas por friagem que lateja. Fica a observar a mulher espremida, nos solavancos do trem em movimento. Abraça um bebê, tão lindo e delicado. Nostálgico, alembra-se de que os bebês, todos, se parecem com Mozart, quando bebê. Mas o torno da vida se encarrega de moldá-los, desfigurá-los. E crescem bebês que não são Mozart, mas sofridos carvoeiros ou plantadores de batatas, entre os corpos pensativos, anatomias alquebradas, ali, naquele trem.
Saltando ao mundo do sol inclemente e de “Vida Secas”, lembro-me dos filhos de Sinhá Vitória e Fabiano. Raquíticos, não têm nome. Ficam, na escuridão do eclipse, o “menino mais novo” e o “menino mais velho”. O objeto de desejo da mãe é poder dormir numa cama de verdade, não no estrado feito de varas, amparado por forquilhas. Ah, miséria é miséria em qualquer canto, riquezas são diferentes. Índio, mulato, preto, branco, miséria é miséria em qualquer canto... , diz a letra da canção.
No recente filme de Walter Salles Jr., “Abril Despedaçado”, o filho do fabricante de rapaduras, com cara de fome, também não tem nome. Atende por “menino”, depois apelidado Pacu pela moça que engole e cospe fogo, do circo mambembe. O garoto aprecia o apelido, mas tem muito medo dele. Pacu é peixe de rio... e quando o sertão virar mar? pergunta para si. Chico Buarque escreveu, com caligrafia rasgante, a confissão perplexa do pai de outro filho sem nome: “Quando, seu moço, nasceu meu rebento, não era o momento dele rebentar. Já foi nascendo com cara de fome, e eu não tinha nem nome pra lhe dar. Como fui levando, são sei lhe explicar, fui assim levando, ele a me levar. E na sua meninice, ele um dia me disse que chegava lá. Olha aí! Olha aí, ai o meu guri, olha aí! Olha aí, é o meu guri...”.
Essas crianças que nunca serão Mozart desprendem-se dos discos e livros, e saltam pra fora das telas do cinema. E, como bichos escondidos em corpos magrelos, comparecem à nossa frente, pelo menos na imagem sinuosa dos números e tabelas estatísticas. Na informação do IBGE, uma, em cada três crianças, completa um ano de idade sem certidão de nascimento. Em 2001, foram 29,4% o número das crianças sem nome, no país. Sem registro, são apenas apelidos: Pedros, Paulos, Pacus. 53,45% no Norte, 42,83% no Nordeste, 22,18% no Centro-oeste, 12,41% no Sul e 10,82% no Sudeste, a região mais desenvolvida do país. Miséria é miséria, e esses mais de um milhão de bebês não foram ao posto de vacinação, não tiveram atendimento hospitalar, nem acesso aos programas do governo. Adolescentes, não teriam a carteira de trabalho e, cumprido o prometido da vida, talvez nem tenham o atestado de óbito. Por quê? Porque existindo, não existem, são clandestinos sem nome, criaturas de uma história apócrifa. Desenham, em giz trêmulo, o sinistro da miséria. E, à margem do direito, lhes cobramos os deveres.
Vivendo nesse trem, ano passado, 350 mil pessoas fizeram a cirurgia plástica de embelezamento, movidas pelo desejo de um corpo com aparência melhor. Sarados, fazem-nos os campeões mundiais na categoria. Num vagão, corpos se exaurem de si, e desvanecem endêmicos. Na forquilha arqueante da vida, uns se dão ao luxo de conter a gula pra não engordar; outros, inominados corpos, se espremem sem nome ou substância de alimento. O comboio da existência corta a paisagem, no meio do abismo. Rodas de aço rangem e cintilam gritos de canções, pedaços de filmes, páginas de livros, hórridas e inclementes lembranças. Em fogo chispante e raio, dão à luz miséria torpe que é miséria, e quão diferente a riqueza... entre todos, entre todos... outono despedaçado, transgressões da fauna humana, numa terra só de homens...
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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.
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