ROMILDO
SANT'ANNA

 

 

O CORAÇÃO
DO SILVA

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Todo mundo sabe, o coração tem moradia certa, fica bem no meio do peito. Mas comigo a anatomia ficou louca: sou todo, todo coração! Se conhecesse esses versos, Silva correria à primeira tela em branco que houvesse, e pintaria o retrato de Jorge Mautner, o poeta-filósofo que inspirou a Tropicália. Mais do que nunca, ao retratar o outro, faria o mais idêntico de seus auto-retratos. Em 1996, Silva já andava mal do velho e talhado coração, e – tinha a intuição – já não havia nem domingo, nem Braile que dessem jeito. Antepunha-se-lhe a implacável dialética da vida: a morte pelo cansaço físico do existir. E, estando mal do coração, tudo poderia parecer-lhe impertinente e enjoativo. Não foi isto que aconteceu.

Em 85 trilhões de batidas, José Antônio da Silva referiu ao símbolo “coração” como o atributo essencial de sua vida e arte. Passional, intempestivo e arrogante, fazendo de si um personagem que adorava contemplar ao espelho, e deixando-se governar pela intuição e pela explicação pré-lógica da existência, parece que personificava os arroubos do “homem cordial”, na nomenclatura de Sérgio Buarque de Hollanda. Criatura viva na semelhança de si mesmo, e profundamente enraizado nas bases agrárias da cultura brasileira, o “coração” era o próprio centro do mundo, no egocentrismo de Silva. Como nas “Raízes do Brasil” de Buarque de Hollanda, ele pensava, via e ouvia, e determinava-se pelas vozes rítmicas do coração. No seu segundo romance, “Maria Clara”, publicado em 1970, escreve que “guardo o meu Brasil em meu coração e transporto-o pra minhas telas” (p. 69).

O coração de Silva se alembrava, calculava, falava, apalpava e filtrava, e tudo inspirava quadros de cores fortes e livros de incomparável singeleza. No romance “Alice”, de 1971, narra que um personagem angustiado saiu “com o coração na mão e selou seu cavalo por nome lambari” (p. 49). Estava triste, mas cavalgando a imaginação em liberdade, transformou o desânimo em resplendor. Ainda em “Maria Clara”, o narrador auto-biográfico confessa que “o coração de um artista puro e verdadeiro é comparado a uma flor que, ao ser apanhada, murcha”. Diz recitativamente que “meu coração é um paraíso; é um jardinzinho onde a tristeza aninhou; todos os dias meu coração dói; quantas vezes meu coração arroxou!” (p. 36). Ainda, se referindo à personagem Alice, por quem o autor se mostrava apaixonado, diz “com o coração preto de dor” que quando ela soluçava “eu também chorava por dentro, machucando o meu coração de artista” (p. 23).

No “Romance da Minha Vida”, começado a escrever na época em que vivia na roça, e publicado pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo em 1949, recorda que “meu coração não agüentava aquelas tristezas” (p. 49); “meu coração não deixava de contar qualquer coisa de ruim que estava para acontecer” (p. 53); “meu coração dava um batido diferente” (p. 90); “meu coração cortava de dó” (p. 106); “meu coração tremia” (p. 108); “meu coração deu umas pancadas agitadas” (p. 183). Em “Maria Clara”, escreve que uma ambulância “deu uma brecada tão forte que doeu meu coração de caboclo sentido” (p. 30); ao vê-la tão mal-vestida, confessa que “aquilo me cortou o coração, que ficou roxinho de dor” (p. 31); as lágrimas de Maria Clara “caíram no meu braço, eram quentes, saídas do coração” (p. 44); era o mesmo que “espetar um punhal em meu coração” (p. 68).

Silva era um ET da roça, e um baita coração no peito, que se alumiava de paixão. No compasso do coração marcado pelo ritmo índio dos cururus, catiras e cateretês, e na languidez tristonha das toadas, e nos impactos agudos da viola, o coração de Silva eram mágicos fachos de luz que se projetavam em suas telas, aos verdes, vermelhos, azuis e amarelos. Somente apeou da vida quando o velho coração de guerra não mais resistia e teimava em parar. Mas parece que já conhecia o novo caminho à sua frente. Em “Maria Clara”, no devaneio da ficção que era sua própria vida, já estivera no Céu e no Inferno. Presenciou na dimensão do além que todos conheciam e admiravam seus quadros e livros. E, como o “homem cordial” a perdurar para sempre nas raízes do Brasil, escreveria que, ao desligar-se deste mundo, “me deu uma comoção de alegria e o meu coração não parou mais de bater”. Isto se deu em São Paulo, 9 de agosto de 1996. Fechou os olhos; abriu-se ao infinito.

 
 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.