CONY, SAGRADO E PROFANO
Sou afeiçoado da crônica jornalística. Em criança, ouvia na Rádio as "Crônicas do Dia" de Dinorath do Valle; em adulto (e a sombra dessa palavra me enche de pânico), emocionaram-me as crônicas de Carlos Drummond, Fernando Sabino, Lourenço Diaféria, Luís Fernando Veríssimo, Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Rubem Braga... pulsantes no lado de dentro da cabeça e na linha direta do coração. Só depois, com a ventura dos filhos e desventura da traição, me sobreveio a juventura, na qual preservo um pouco de menino no horizonte da maturidade. Como se vê, a crônica de mim mesmo parece um baita e destoante anacronismo.
Críticos confiáveis afirmam que a crônica jornalística brasileira é gênero literário. E, tenho acreditado, os cronistas realizam o mais arrebatador, requintado e sincero jornalismo opinativo. Pautando as ninharias do cotidiano, na linha da História da Vida Privada, nem sempre se preocupam em deslindar a superfície ordinária dos acontecimentos.
Entretanto, potencializando a estilística da afetividade, realizam a dissecação existencial do humano diante de seu semelhante, de si mesmo e dos fatos, na procura da verdade, em nova e arejada dimensão. Na crônica revive o rito silencioso ao deus Cronos - o tempo em seu flutuar persistente e lendário; o que importa é a mediação desinquieta entre o sonho (que é real) e a realidade (quase sempre tingida pelo falso).
"Quando a lenda se sobrepõe aos fatos, publica-se a lenda!", diz o jornalista na cena final de "O Homem que Matou o Facínora" (The Man Who Shot Liberty Valance, 1962), de John Ford. Este sim, o facínora, é real, bem como seu justiceiro; os que sobram são desejos irrealizados, no portal inferior da vindita e das quimeras.
Carlos Heitor Cony é um desses cronistas maravilhosos, mediador e entrelaçador da realidade flamante e o sonho em chamas. Mil linhas seriam poucas pra definir o seu estilo; é prato cheio para as teses acadêmicas mais festivas e narcisistas. É sarcástico e irreverente; como poucos, realiza a própria auto-ironia e, sublimando o paradoxo da existência, sacraliza o profano e desconsagra o sagrado. Tempos atrás, escrevendo sobre o avô moribundo, narra que o velho permaneceu vários dias com os olhos abertos e a boca fechada, no vai-não-vai irreversível da alma. Na hora do desenlace, no entanto, ante os olhos comovidos da família, repentinamente fechou os olhos e abriu a boca. Balbuciou erótico, libertino: "Que pernas... que pernas!", e morreu.
Em tempos de Copa do Mundo, quando mais se evidenciam as pátrias em chuteiras, Cony escreveu sua "Sugestão para a Copa". Fala da inutilidade de tanto aparato, para um evento tão fugaz. Haveria economia de papel, saliva e horas de satélite. Sugere uma alternativa simples, como na Idade Média, quando duques, príncipes e os próprios reis se enfrentavam nas batalhas. Os atuais chefes de estado decidiriam as contendas, vestidos a caráter, e armados com sobriedade. Seria uma disputa de magnificências, em nada parecida com um campeonato rasteiro de bolas-de-gude ou cuspe à distância. Evitar-se-iam os sobressaltos na madrugada, revoadas de delegações, concentrações, futricas, o pipocar esquisito de cabeças ouriçadas e topetes, e o messianismo de treinadores e cartolas. Como os chefes de estado mais ou menos se equivalem em idade, a Copa do Mundo seria um torneio equilibrado e talvez mais justo. Desde, claro, que o Vaticano não entrasse em campo com Sua Santidade.
Em "O Manto Azul", Cony relembra que, em 1950, o time brasileiro deixou de lado a canarinha oficial, e entrou em campo com a camisa branca. A esta se atribuiu a inhaca, e fracasso contra o Uruguai, no Maracanã. Em 58, na decisão contra a Suécia, a seleção teve de vestir a camisa azul. Foi um medo generalizado: uniforme azul era derrota na certa! A certa altura, Paulo Machado de Carvalho entrou no vestiário e proclamou: "Vamos usar a camisa que é da cor do manto da Virgem Aparecida, nossa padroeira!". E ganhamos de 5 a 2. O cronista adverte, no entanto, que o manto azul deve ser usado com parcimônia, só em momentos de real perigo. E sentencia que nunca se deve brincar com a graça de N. Senhora; tampouco com o Ronaldinho Gaúcho!
Carlos Heitor Cony é um desses jornalistas iluminados que desfazem o horror das carrancas, tripudiam dos facínoras e arrancam do aflitivo dia-a-dia a redenção e beleza, e o trepidante frescor da juventude. Sua bênção, prezado escritor!
Romildo Sant'Anna, escritor, assessor científico da Fapesp, é curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' - São José do Rio Preto, Brasil.
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