ROMILDO
SANT'ANNA

Código Da Vinci

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A indústria do best-seller parece nortear-se por uma referência de “consumidor” com nível de exigências abaixo da média. Busca atingir o que teria restado do tradicional leitor de obras literárias. Com esse fim, o livro, ou produto, se utiliza de meios retóricos massificadores e repetitivos, e expedientes de linguagem capazes de gerar a perda do espírito crítico em relação à literatura e sua história. Implica a negação da acuidade artística pela palavra e metódica adoção de fórmulas conhecidas, chegando-se a um índice de informação estética próximo de zero. Tais publicações, concebidas como “mercadoria”, e tão em compasso com a economia de mercado, configuram uma espécie de pulo-do-gato em que a instância almejada é uma forma de negócio aureolada pela tênue mas triunfante tintura de refinamento dos costumes: a leitura. O marketing que as acompanha é a tal ponto avassalador e coercitivo que chega a tornar embaraçoso ao “público-alvo” admitir que ainda não comprou ou leu determinado livro.

“O Código Da Vinci” e seu fenomenal sucesso editorial é encarnação dessa receita. Ao longo de 475 páginas, é difícil encontrar um só efeito de construção, um só enlace de idéias que levem ao prazer estético do texto (falo da tradução brasileira). Seus capítulos se costuram segundo o estereotipado revezamento de duas ações diferentes que, adiante, se amalgamam. O enredo apropria-se dos clichês do romance policial e envolve matéria pretensamente sofisticada: artes, artistas e colecionadores, a bíblia, antropologia cultural e história. Sem que se apresente como gênero puro, não configura como romance-reportagem, narrativa historiográfica, crônica ou tese investigativa. Esta elaboração ambígua, feita da colagem de elementos que fazem sentido no futuro imediato da narração, propicia um fundo de expectativas e suspense. E, o tempo todo, obstinadamente, envolve elementos persuasivos que reafirmam tratar-se de uma fábula com idéias inovadoras e combativas capazes de revelar segredos e conspirações que poderiam alterar os rumos da era cristã. A chave de seu fascínio é incutir no leitor a ilusão de que lhe são confidenciadas extraordinárias revelações, fatos intocados e ocultos que pouca gente conhece. E, assim, a literatura de entretenimento se transformaria em produto utilitário, educativo e formador.

Citando Dan Brown, o autor norte-americano, “não há ninguém mais doutrinado que o próprio doutrinador”. E, no início, adverte que o romance se baseia em alguns fatos reais. Ao percebê-los, no entanto, representam a essência do livro. Sua doutrinação é irradiar, por meio de verdades comprovadas, invenções e formulações indutivas, aversão à instituição católica. Para tanto, ensaia a teoria de que o cristianismo é uma fraude cuja principal nervura é uma mentira: Jesus Cristo. Obras de Leonardo Da Vinci, que a narrativa propõe decodificar, com algumas interpretações temáticas e pictóricas apropriadas, outras absurdas, esconderiam um emaranhado de pistas que, em síntese, testificam o cálice sagrado da última ceia – o Santo Graal – como representação de Maria Madalena, esconjurada pela Igreja como prostituta. Seria ela esposa de Cristo, uma evangelista, a mulher (?) de rosto piedoso e cabelos ruivos sentada à direita de Jesus no “afresco” (não é um afresco) “A Santa Ceia”. Os protagonistas, Robert Langdon, catedrático de simbologia religiosa de Harvard – versão literária de Indiana Jones – e Sophie Neveu, criptologista e agente da polícia francesa. A ação, uma inverossímil e mirabolante cruzada noturna, em imaginosa decifração de enigmas, anagramas e códigos secretos. Os fins, a dissimulada exploração da credulidade, com toques de impostura e má fé. Para mim, dispensável. Mas há gosto pra tudo. E quem sou eu a me indispor contra milhões e milhões de ávidos consumidores dessa literatura?

 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.