HISTORINHA DA CIVILIZAÇÃO

O tempo, antes de se converter no monstro que devora, e vai matando com o germe da decrepitude, o tempo naquele tempo era então inerte, sem arte, sem vida, sem ritmo nem nada. Nem mesmo deuses eram então energias criadoras. Foi quando a terra emergiu dos mares e, magnânima, tomou duas formas: a de solo e a de esplendorosa Vênus, a deusa Afrodite, para que tudo crescesse, na euforia do prazer, e se multiplicasse. Nos cafundós da gênese, o Céu, que muitas eras após viria a chamar-se Urano, lançou seu sêmen sobre a terra. Terra que mais tarde viria a atender pelo nome de Gaia. Do casamento mágico, que teve o tempo como padrinho e a corrente das marés como madrinha, nasceram os deuses (e, após, um Deus que comanda tudo). E depois vieram os seres, e as coisas geradas pelos seres, como as ferramentas de agricultura, as pinturas de bois, o vinho, as cartas de navegação, os clipes, chips e velcros, a ganância e, com essa última, a procissão de despossuídos. Foi dado ao terráqueo o gozo do início, e após, a consciência da morte, como estigma fundamental da expulsão de um quimérico paraíso. Talvez esse destino o fizera ambicioso, o terráqueo, a ponto de sempre desejar ao que é do próximo.

Tudo nasceu fecundante das carnes da terra. Terra-santa imaculada, umbigo do mundo. Terra-natal, recanto onde idealizamos o rito de volta do filho pródigo. Salve, Rainha, de onde saímos - diz a palavra - e pra onde voltamos, com a humildade de, ricos ou pobres, sermos predestinados ao húmus, bendito fruto de seu ventre. A Terra-afrodite é o eterno feminino; é esse enigma candente que nos oferece o sorriso de Monalisa, a ressaca de Capitu – essa dona que morreu com o dom de Judas, mas que talvez não tivera sido Judas, como outras tantas e tantas capitus. A terra são Marias cheias de graça, beatitude de todas as aparecidas, rainhas de misericórdia, esperança nossa, salve! É Beatriz compadecida e volátil da comédia divina que é a vida; é Dulcinéia de amores e sonhos dulcíssimos e quiméricos – a tal que conseguiria fazer brotar a virtude de um impossível chão. A terra é mulher do velho carpinteiro, que lavrou a madeira do arado, dos telhados e de todos os berços, e de todas as cruzes de todos os braços. Mortal, como os que dormem nesses berços e cruzes, o carpinteiro-lavrador teve por sua fêmea sublime adoração. Desposou-a tão ternamente que nem a tocou, e foi um dos poucos que se fez santo de verdade.

Mas voltando a sanfona do tempo, e muito antes de Cristo vir expiar os pecados do mundo, a mãe-terra, com sua carne em forma de solo, foi retalhada em capitanias, países, e negociada aos alqueires e metros quadrados. Uns poucos quiseram muito, em sinal de dominação e poder. E uns poucos Siqueiros pintaram murais pelas paredes do mundo, alertando para injusta da ambição. Contudo, os que deveriam enxergar esses letreiros, ou não tiveram olhos, ou mandaram prender e matar os Siqueiros como subversivos. Uma lógica explicava que o cervo existe pra ser devorado pelo leão. Após os dinheiros, inventaram-se trenas, a geografia, a geopolítica, exércitos, máquinas de guerra, astrolábios, cartas de navegação, relógios-de-ponto, cartorários que dão fé, escrituras com firma reconhecida, exílios, desterros e refinados modos de opressão. Surgiram as procissões de renegados e ninguéns, andando sem nada pelo chão do mundo. E a essa mudança que se fez à terra deram o nome de Civilização. Desanimados com a tal, os deuses partiram pra outros confins. Ainda bem que ficou um, que ainda teima em segurar a nossa barra.


Romildo Sant’Anna, premiado no “Casa de las Américas” - Havana, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antonio da Silva’ – São José do Rio Preto – SP - Brasil



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