ROMILDO
SANT'ANNA


Celso Caran

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O amigo era paisano de todos os palcos. O italiano, caixote enfeixando toda sorte de personagens, no talvez feérico das ficções. À frente, uma platéia em penumbras, êxtase de fantasias; o elisabetano, barroco, comungando espaços dentro do espaço, tempos no tempo, em multiplicação do real-imaginário; o de arena, misto de picadeiro circundado de gente, pão e vinho, aventuras e tragédias. E o mais espetacular dos palcos brasileiros: o do asfalto encoberto de estrelas, a turba de passistas, batuqueiros, condes e cinderelas pela noite vã, bailando candentes e reverenciando a orla em transe, espectadora delirante na passarela multicor dos carnavais. Meu amigo vivenciou esses palcos no diletantismo da alegria. E, por seu denodo à comédia da vida, ofereço-lhe um Shakespeare que quiçá contradiga seu desfile pessoal nos recantos e tropeços do mundo: “aos homens sobrevive o mal que fazem, mas o bem quase sempre com seus ossos fica enterrado”. Em Celso Caran sobreveio a máscara da ventura, colada ao semblante em sorrisos, e de onde lhe saltava a alma em sinal de oferenda.

Pierrô e Colombina, Sol e Lua, Hermes e Afrodite, transitando elegante entre gentes de todas as moradas, do trapo à fantasia de trapo, era o adônis preparado, lívido, vívido, lido e relido. Fez estudos de dramaturgia e cinema em Iorque, de dança em Londres, de artes e cultura geral em Lisboa. Formou-se ator na Universidade de São Paulo e representou com artistas como Bibi Ferreira, Grande Otelo e Paulo Autran. Encenaram “Hombre de la Mancha”, extensão picaresca de meu amigo, engenhoso fidalgo. E “Hair”, na euforia da benquerença, anunciando a nova era de aquários. Foi galã no enredo de fotonovelas, figurante em filmes nacionais e estrangeiros. Mascate de ilusões brotado na pequena Orlândia, caminhava em fleuma de grisalho cavalheiro, o olhar agudo de malandro boa-praça, e a macheza efeminada destampada no ímpeto de cingir o mundo ao peito, abraçando toda gente deste mundo, sedutor, parece que muito além do tempo que lhe fora escrito pra viver.

Despido da cobiça e celebrando um quimérico oferecimento da essência mais suave de si, Celso Caran era um amador transformado em cousa amada, como num clássico soneto de amor. Filho da loba, fez-se guia de muitos jovens amadores a conhecer os ares e humores de Itália. Abria-lhes portais pra seus desenhos e pinturas, gestos em passarelas, cores de flores e reluzentes purpurinas e, sobretudo, para os olhares faltos de arte, história e cultura. Apresentava-lhes o vulto vetusto europeu e calejado, colo instigante de um passado cozido no tempo. Ao regressarem, com a sensação “al di là delle cose più belle”, seriam meninos e meninas nostálgicos e – aprendizes de meu amigo – contagiados pelo elã de compartir.

Caran canavalizou a vida sem tintas da maldade; ao contrário, generoso, dadivoso, foi a brandura em pessoa. Por onde transitava era um rastro de afeto, um faz-de-conta prazenteiro do gozo, só percebido na entrelinha das sensíveis diferenças. A risada ao léu escancarada, acordando consciências mal dormidas, era seu marco de vida, adorno de um estilo inquieto, maduro, renitente. Abandonou-nos moço-velho, por calculada determinação cunhada no altar dos mistérios. Mistérios que estendem mãos e propiciam, mas tomam de volta, inapeláveis, cobrando o retorno do filho que é seu. E, vez por outra, concedem à gente um paisano virtuoso, múltiplo em talentos e belezas, criatura dum coração danado que, não cabendo no peito, resolveu se aquietar. No silêncio excelso ressoa pungente a cadência dum batuque, e a gloriosa gargalhada de uma estrela. É o brilho de Celso nalguma avenida, brincante em sonora fantasia (1946-2004).

 
 
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.