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ROMILDO SANT'ANNA
A Ceia
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Tenho poucas saudades da aurora da minha vida - recitou-me o contador de histórias imitando redondinhos. Além de cronista foi do coração dedicado enfermeiro, restituía a saúde dos que precisavam de cura. Piá de oito anos, andava do sol nascente à boca da noite, descalço ou com sandálias aladas, pelos ermos empoeirados de Betsaida, matagais de urtigas e juás, e convictos castelos. Sua veste uma ordinária fazenda reciclada dos sacos de farinha. E nadava em corgos, mirava com a atiradeira aos passarinhos, entrava sozinho ao solo de recantos sempre novos, aventurando nas surpresas de conhecidos azares. E repisou-me nesse dia de lembranças comovidas: era meu jeito inocente e solitário de lidar com o mundo, na aurora longínqua da vida.

A tarde vinha chegando. A nossa mãe pediu que fosse à compra da comida. Não havia lista, apenas meio quilo de quirela. Era o dinheiro minguado a refazer-se num cozido do jantar. A mercearia era calma luz convidativa de modo a enxergar as caixas do bacalhau que dormia em quantidade, carnes secas e salames defumados, tonéis de azeitonas no molho agro de uma quimera de delícias. No entorno, vasilhames aromáticos de noz-moscada, cravos da índia e pimentas-do-reino, tábuas grossas e azeitadas empilhando queijos e, no balcão, cestos de broas e a rapadura em lascas para alguém degustar um pedacinho. Num canto retirado, pipas de óleo pra venda a granel e, dependuradas em caibros, réstias entrelaçadas de alhos, parecendo tranças róseas de meninas. No solo, em plataforma de cedro, sacos de juta franjados nas bordas donde se ofereciam batatas, cebolas, lentilhas, farinhas de trigo e mandioca, e farnel de todo tipo. Havia o feijão preto, o guandu e o mulatinho, uns misturados ao pó de pedregulhos, outros com a bandeirinha avisando que eram de primeira. E vinha a seção do arroz. Arroz de um branco estridente chamado agulhinha, outros cariados, quebrados nas pontas, à escolha do freguês. Num hiato dessa fila encenando a hierarquia de preços e posses, um meio saco barrigudo da quirela. Estava ali o ajuntamento de minúsculas formas foscas e dilaceradas, mote da minha fome, jurisdição e presença.

Pedi ao moço que pesasse meio quilo da quirela. E apontei com o dedo. Justifiquei, descabido em desajeito, que era pra dar de comer aos pintinhos. Ele mirou no rosto a inocência que eu não tinha e teimou que deveria levar à balança a quirela de milho. Obstinei na de arroz; ele na do milho. Fazia mal às criações, explicou. Concordei aflito, fazendo descaso à missão. Desci de volta à casa. A nossa mãe me viu adivinhando a coisa certa de um desalento humilhado. Sequer demos um pio. Proibira que cantássemos a ladainha da miséria. Peneirou que peneirou a ração de milho, tingindo de farelo o chão batido. Levou ao fogo misturada em banha de vaca, água, sal e broto de abobra. Sentenciou severa assoprando o lenho: tenho que dar de comer às crianças! Respiramos profundo na liturgia dos olhares, ela, sem algum abatimento; eu, esgueirado entre o medo e a nossa cumplicidade.

Não tínhamos nem sacola, nem dinheiro e duas túnicas. Só nós, a canjica de milho lavrada em verde e o pão que nosso pai trouxera à tardinha. Não conseguira emprego. Éramos sete, sete mil vezes nosso pai à cabeceira, e a nossa mãe e nós sentados em grupos de dois, alumiados pela relutância duma chama a querosene. A mãe recitou um trecho evangelista, se não me engano de Lucas, capítulo 9. A toalha mudou de aparência e ficou muito branca e brilhante. E, esfomeados, engolimos o amém. Ninguém traíra, todos eram solidários, na benquerença dessa noite. Comemos e ficamos satisfeitos e - parece lenda! - recolhemos doze cestos dos pedaços que sobraram. Era a união sublime, legenda doutro amanhã, macerado de esperança. E, num talho da aurora seguiria outra vez o cronista, piá absorto e descalço, escrevinhando retalhos de sonhos na cabeça, desempenando calçadas, encoberto à sombra de nuvens. Ou vestindo sandálias aladas pelos ermos sem fim de ser criança. Criança em mágicas veredas, convictas veredas, castelos reluzentes, fulgurantes, flutuantes catedrais.

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.