A CASA DOS TRÊS MUNDOS

Era uma casa, no traçado de um sonho: plantas civis de instalações elétricas, hidráulicas, de fundação para pilastras e vigas, escadas e janelas. Pedreiros, engenheiros, serventes, encanadores, eletricistas, numa orquestra de paredes, cheques e lajes, areias e dobradiças. Até que entregassem as chaves foi a labuta mais custosa do mundo. Mal sobrou grana para os primeiros móveis, a cama, o fogão, o aconchego do sofá mandado reformar. Num belo dia foi para lá uma moça, no resplendor do sol que desenha e colore as flores de maio. Ela imprimiu olhos e alma em todos os espelhos. A natureza equipou a casa com um garoto lindo, como costumam ser lindos os filhos legítimos de uma casa. Janelas rituais olhavam construções ao redor; as rosas falaram, exalando o perfume dos anjos. E foi quando o chão sedimentou o milagre de a casa ser verdadeiramente uma casa, na completude mágica dos exageros e rebuliços.

É curioso como uma casa tem a vida escondida, como um palácio dourado. Ela é o ponto cardeal aonde os sonhos vão em procissão. É o aconchego, o refúgio, a proteção, o seio materno mais carinhoso e sensual, o reduto mais íntimo, a oficina de alegrias e, não sabendo ouvi-la, a forja da tristeza. As paredes de fora são as máscaras, as aparências, aquilo que se deseja representar aos outros; o interior é o próprio ser, o recôndito de nós mesmos, a vida como ela é, nos solavancos da vida. Na casa rebrotam histórias, amores e prazeres, maquilagem e rugas, a gesta do dia após dia. A casa é o ninho redentor e, por vezes, presta mais um serviço: ouve silenciosa o morador silente, na agonia das recordações.

Meu amigo acordou na noite e perambulou pelo que restou da casa. Parecia bêbado. A única companhia era o tinir insistente, a monotonia gotejante na pia de inox. O anjo, que estava mais crescido, mal sorvia as aventuras adolescentes na Alameda dos Anjos, passeando entre montanhas. Ele ficou na idade de sonhar com a rua, mal sabe o que é uma casa, como o pai, ordeiro e cumpridor, até há pouco não sabia. Ela está desprovida de sua essência de casa. Ela se fôra de si, a casa, sem que meu amigo percebesse. Feita de colunas e vigas e paredes riscadas em quartos baldios, a casa escura era um corpo amputado de alma, dormitório sem respiração.

Agora meu amigo sonha com um novo ninho, para a solene e majestosa companhia do garoto, nas visitas descontínuas. Murmura que quisera ser um bicho, e reunir, por instinto, só um punhado de gravetos, sem a pulsante cabeça para pensar e um malfadado coração partido. Mas não, a casa nova há que existir como uma casa, nos trâmites burocráticos e projetos de ser casa: livros e armários, tijolos e arquiteto, serventes e fios, carpinteiros e o pó da cal, e as chaves, e as plantas de papel. A vida tem de ser bela e é preciso alimentá-la do devaneio ancestral: construir-se uma casa. Há que tingi-la com as cores de um maio, a seiva da primavera, a contradança da chuva, atraindo a moça que se vai deixar na casa, com a face em todos os espelhos, e oferecer-lhe alma e, quem sabe, fecundá-la de janeiros infindáveis.

Muitas coisas acontecem nos três mundos de uma casa. Ela é o centro da existência, na liturgia vívida de seu silêncio. De tudo a casa verdadeira poderia ensinar-nos. Mas só atentamos para os seus signos quando ela já se esvaiu de si, virando alvenaria, pó e anúncio classificado, pois – é costume – as vigas de uma casa duram mais que os ossos de seu morador. Meu amigo adquiriu nessa noite o sublime alumbramento do que seja uma casa. Agora que é tarde, tem a chave da sabedoria do que seja uma casa. Malogrado, meu amigo sabe que perdeu a oportunidade de receber as lições de quando a morada ainda pulsava, em seu viço febril de ser casa. Mesmo às vésperas da nova construção, derrama-se na nostalgia do que seria mas não foi, do maio que se murchou, das rosas que não falam. E, por caminhar à noite na região do vazio, com molduras em paredes desenhadas pelo tempo, só molduras, anda meio envergonhado.

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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, recebeu o Prêmio Casa de las Américas - Havana