ROMILDO
SANT'ANNA
Caras e Nomes

.
 

Nada existe de mais próprio e indiscreto que os nomes que dão à gente. Por isto, talvez, estudiosos os classifiquem “substantivos próprios”. E que substâncias eles têm! O étimo e sonoridade dos nomes formulam devoções, ideologias, homenagens... que nos tacham ao nascer. Há quem acredite que a glória da graça com que se averba o rebento influencie, aguce qualidades e molde seu jeito de ser. Assim, o camaradinha inocente, além do peso de ter vindo ao mundo, obriga-se ao ônus de ter a cara do nome que lhe deram. Torna-se um cativo, predestina-se a um apelido, na ventura e desventura da vida. O nome sedimenta-se em nós, em corpo e espírito, indissociável, como a abelha, um ferrão e o par de asas.

Nomes próprios mantêm vivas as aspirações secretas de um povo. Os primitivos nomeavam bebês pelas qualidades de animais e a natureza. Kevin Costner veio a ser o corajoso “Dança com Lobos”, no comovente filme indigenista. No cozimento místico dos “civilizados”, e sendo a criança uma dádiva de Deus, surgiram os Deodatos, dados por Deus, Teodoros, presentes de Deus. Lúcias são umas que nascem ao romper da luz; outras são mesmo Auroras, obrigadas a brilhar. Umas são Áureas e Lindauras, lindas como ouro; outras Rosas, Margaridas e Sílvias silvícolas, filhas das selvas. As religiões nos legaram nomes de deuses, profetas, evangélicos e santos de todo dia. Passamos também a costurar palavras em nossos nomes. Renata é a re-nascida [pelo batismo], Nonato é o não-nascido [em parto normal]. César quer dizer “cortar”. Daí os Cesários e cisões cesarianas. Em plagas secas e severas, há infindáveis Severinos, filhos de tantos já finados Zacarias (de quem, noutros tempos, Javé um dia se lembrou). Há Eugenias, bem nascidas, e uma pra sempre bastarda, na acidez irônica de Machado de Assis. Caetano Veloso diz que gosta do Pessoa na pessoa, da rosa no Rosa. Além desses, eu acrescentaria o nome de Graciliano, tão gracioso e múltiplo que é Ramos.

Escritores queimam fosfato pra identificar suas criaturas. Alencar montou Iracema com as sílabas de uma idealizada e virgem A-mé-ri-ca. Nélson Rodrigues transpirava ao dar nome a personagens. É como se apadrinhasse desafetos: Dr. Palhares e Almeidinha de antemão são canalhas; Bezerra, um cretino, pois dava em cima da cunhada aos olhos da própria esposa. Sérgio Porto que, no “lado b”, assinava Stanislaw Ponte Preta, lembra-se de um pintor de paredes chamado Leônio Xanás. De sonoridade estranha, constata que tal nome ajusta-se também à cara de algum lenitivo de farmácia, ou vinho tinto dos bons. Diz que, numa loja de lenços de seda, pediu meia dúzia de Leônio Xanás. A balconista, intrigada, foi ter-se com a gerente. Esta, gentil, aproximou-se e se desculpou: Infelizmente, cavalheiro, estamos em falta... Semana que vem recebemos outra remessa. De Leônio Xanás!

Hoje, tantas vezes, os nomes que dão aos filhos são neutros, ou pérolas falsas. Na ingenuidade singela, a pobreza sonha em brilhar. Quem não conhece crianças chamadas Carolaine e Yasmin? Dayane dos Santos é nossa “lady” na ginástica ornamental, orgulho da raça. Quem mira o Brasil pelos arranques das chuteiras pensa que nascemos anglo-saxões. É que, padecendo na marca do pênalti, quanto mais carente é um povo, mais reverencia e se ajoelha aos poderes e volúpias do império. Porém, filhos da miséria e sedução, surgem valorosos atletas: Kleberson, Edimilson, Edson, Edilson, Anderson e Denílson, como se a cada nome construíssemos, num recanto da província, um monumento de areia a Jefferson. Porém, campeões, apesar de tudo, cunhamo-nos num dito de Euclides e, pra nossa salvação, antes de tudo somos fortes.

Pelos tempos afora os nomes é que são donos de nós. Põem-nos na cara a sua tinta e tatuagem. No étimo de Judas estava Judá, “o que era lembrado e festejado”. Mas, atraiçoando o próprio nome, cometeu a infâmia da outra e mais terrível traição. O livre-arbítrio converteu-lhe o destino, e o mortificou em vida como pobre diabo... Tudo tem fim, no sem-fim de uma crônica de nomes. E, na dança de mercês e caprichos, bate-me à porta, repentino, o J. Pinto Fernandes. Solicita-me entrada no final da história. E aí está ele, em pessoa física e jurídica. Explica-me que quer homenagear seu criador, o brilhante e vigoroso Carlos. Verdadeiramente magno. Maravilhoso poeta da nação.

. .
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.