CARANDIRU E AS ALMAS PENADAS

a Jarbas Brandini Dutra

A obra de arte é um “mundo de dentro” feito da costura de retalhos do “mundo de fora”, a realidade em que vivemos. O filme “Carandiru” é esse mundo de dentro da arte que, no entanto, reflete outro mundo de dentro: o universo subterrâneo, infecto de dores e contaminações, a penitenciária e seus penitentes. Comparado a nosso mundo, a costura do filme resulta um trapo incomum, o universo em transe às escondidas, lado de dentro estranho, constrangedor e comovente dos contrários.

No cinema havia grandes filas, pipocas, guloseimas e guaranás. A maioria dos assistentes eram garotos e seus topetes amarfanhados, acnes e deslumbres. E meninas da mesma idade, passeando elegâncias comedidas e a risonha crença no porvir. Olhos apressados por sorver um mundo concreto que, para muitos, nem começou. Os do lado de cá e os de lá, no lado de dentro da tela, nascemos com bela fisionomia e sem manchas na alma. Mas o contexto da vida nos molda distintos e nos divide em classes e cores, e histórias de vida, e entre aqueles que transitam tiritantes do lado de fora, e os que subsistem aquém do sol, da misericórdia e humanidade, remoendo a existência no fio da lâmina, insólitos e patéticos, como bichos escrotos nas grades e jaulas.

O filme, colocando foco nas sombras do desespero, é uma louvação à humanidade, na pele dos desvalidos. Começa com uma desavença de detentos, no cotidiano da prisão. Apresenta uma hierarquia estranha, e as regras de sobrevida segundo as leis de dentro, diferentes da ética, legalidade e moral que preceituam o aqui de fora. Esse preâmbulo demarca o momento da chegada de um médico, Drauzio Varella em pessoa, ouvidor e escritor do livro “Estação Carandiru”. Ilusoriamente adentramos com ele, só que acomodados na poltrona fofa do cinema. E percebemos um impacto: se nossos olhos iluminam a alma, a sensibilidade se vê tocada pelo odor funesto, a pestilência e gritos, e a anti-luz daquelas cenas. O mundo de dentro da arte nos transpõe ao mundo de dentro, escabroso e bizarro, dos prisioneiros na prisão. A partir da cortina que se abre, vemo-nos arrebatados pelo soturno entre grades, as pancadas de portas que se fecham, os antros e corredores lentos, o musgo das paredes formando altares e inscrições desesperadas, as lâmpadas que cintilam cansadas, enfim, o Carandiru e seus 7 mil vultos quase-brancos, conflitos, intimidades avessas, suas comédias e tragédias. Nesse lugar, erigido às margens de um metrô que vai e volta, os valores são outros: a moeda são pacotes de cigarro e nacos de entorpecentes; o feio pode ser bonito; a crueldade, diversão; o homem pode ser mulher; o futebol e o hino nacional, lástimas implacáveis e comoventes da comédia humana.

O filme indaga: o infortúnio, por quê? Compreende que não há receita infalível que evite o rio do sofrimento. É que o bem pode aderir-se ao mal, por desconhecê-lo, ou iludir-se por seu fascínio. Em pouco, por descuido ou por bobagem, se está prestes a usufruir a dialética do crime e castigo, sem energias que dissipem a escuridão. Assim, mesmo tendo bebido da fonte límpida do bem, o filme sugere que ninguém está isento de defrontar-se com a cara do terror. Entre poltronas e guloseimas, ficamos em estado de êxtase no curso da arte. Por instantes, e simbolicamente, somos tomados pela sutil premonição de que poderíamos estar ali, em meio àqueles escombros humanos, no lado de dentro do inferno. Ou, aliviados, numa tela ficcional de cinema, com seus recursos modernos e confortos. Alertamo-nos, enfim, de que a existência é governada por estranhos augúrios, e que ninguém é capaz de domar a franqueza inapelável do destino. O filme de Héctor Babenco, sua construção barroca e apropriação dos meios artísticos da tragédia, possui a probidade humanitária de repor alma aos criminosos. Pergunta e exorta o lema escrito: o que não tem pecados, atire a primeira pedra!

“Carandiru” é uma grande realização de cinema. A fotografia inscreve na tela a plenitude da luz e não-luz, a produzir sensações plásticas de comovente beleza; o domínio cênico dos atores é antológico na dramaturgia brasileira; a concepção artística do diretor conduz os fios narrativos na medida exata dos sentidos, mensagens simbólicas e emoções. O todo se completa na arte em equipe. A cena documental da implosão do presídio é descarga de alívio, e antecipa no espectador a interiorização emocionante da tragédia: a catarse. Perturba-nos a imagem da chacina, e um enorme cachorro circulando entre os corpos, a lamber sangue. O Cão ali passeia. Luzes se acendem. Reacende em mim, e em todos nós, a legenda dramática de um cálice, que teima em não se afastar.

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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, é curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.