ROMILDO
SANT'ANNA

CAETANO,
UM ARTISTA NA MÍDIA:
O SENSÍVEL, O ERUDITO E O POPULAR (2)


•  Aliteração e Movimento Migratório


O poeta e crítico Augusto de Campos já apontara a grande incidência do verbo ir e seus correlatos em Caetano Veloso. As primeiras décadas de seu percurso cancionístico registram os passos do artista pelos lugares por onde passou, ou seu anelo de saída de algum lugar. Passeando pelos primeiros decênios de sua obra, sobressai a inesquecível “Alegria, Alegria”: “ caminhando contra o vento / sem lenço e sem documento / no sol de quase dezembro / eu vou ” ( Caetano Veloso , 1967). Em “Você não Entende Nada” argumenta e solicita: “Você não está entendendo / quase nada do que eu digo, / eu quero ir-me embora , / eu quero dar o fora , / e quero que você venha comigo ...” ( Caetano e Chico Juntos e ao Vivo , 1972). Insubordinado ao mesmo lugar, ou refletindo sua inquietude existencial e artística, professa com sotaque lusitano que: “navegar é preciso; / viver não é preciso” (“Os Argonautas”, Caetano Veloso , 1969). Na elocução, costura as Palavras de Pórtico de Fernando Pessoa: “Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: ‘navegar é preciso; viver não é preciso'. Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para casar com o que eu sou: viver não é necessário; o que é necessário é criar”. Em “Nu com a Minha Música” ( Outras Palavras , 1981) Caetano relata seu percurso pelas cidades do interior do Estado de São Paulo; em “Trem das Cores” ( Cores e Nomes , 1982, em sinestesia policrômica e visionária, lança o olhar expressionista de casas que vão passando. E escreve: “as casas tão verde e rosa, que vão passando ao nos ver passar...”. No álbum Outras Palavras (1983), uma canção em ritmo caribenho diz:”: “mamãe, eu quero ir a Cuba / quero ver a vida lá... Mamãe eu quero ir a Cuba / e quero voltar ” (“Quero ir a Cuba”). Em “Épico” ( Araçá Azul , 1973), mobilizando os sentidos do signo “rio”, como substantivo que designa a cidade e conjugação de “rir” em primeira pessoa, registra: “ vivo entre São Paulo e rio / porque não posso chorar”.

Como se nota desse passeio, o significado de ir é uma alegoria na efervescência criativa de Caetano. Reflete os caminhos de sua própria arte e trajetória autobiográfica, como matéria fundamental da canção. A visão dessa inquietude migratória, que se projeta da letra, musicalidade das palavras e efeitos sensoriais, já se encontra em “Irene” ( Caetano Veloso - 1969), disco gravado em Salvador e que, com o disco de capa psicodélica Caetano Veloso (1967 – um bilhete manuscrito da contracapa pergunta “onde é que vamos morar?”) o consolida para sempre nos panoramas mais fecundos da arte brasileira.

Eu quero ir, minha gente,
Eu não sou daqui,
Eu não tenho nada,
Quero ver Irene rir,
Quero ver Irene dar sua risada.

Irene ri, Irene ri, Irene ri,
Irene ri, Irene ri, Irene ri,
Quero ver Irene dar sua risada.

“Irene” é uma das últimas canções compostas no Brasil, antes do exílio em Londres. Irônica, pois melancólica e eufórica, afirma autobiograficamente que “eu não sou daqui”, “eu não tenho nada”. Evoca, no entanto, o sorriso da irmã Irene, da qual se despede: “quero ver Irene dar sua risada”. Como se a ouvíssemos no tempo real do estúdio de gravação, uma interrupção no meio da música, simulando erro num dos acordes instrumentais, recontagem do tempo (um, dois, três...) e reinício do registro fonográfico, traz à imaginação o ambiente informal e descontraído entre os músicos, ambiente este que se transfere ao clima de encontro, ou a uma reunião de despedida em família. Lírica, a canção “Irene” é recordação de um momento crucial na vida. Realiza-se como se fosse uma “consagración del instante”, na intuição do poeta mexicano Octavio Paz. A letra, realizada em forma de epigrama, gira em torno do mesmo assunto, volta e revolta ao mesmo tema, como o pulsar de uma melancolia insistente, latejante.

Na sonoridade das palavras, esse pulsar realiza-se por um admirável jogo de aliterações: o estribilho se faz pela repetição em eco, pois seis vezes, do segmento “Irene ri” (irenirri, irenirri, irenirri, irenirri, irenirri, irenirri), com o prevalecimento da ironia anunciada: a despedida (ir) e o sorriso (ri). No jogo aliterativo, o som “i” reitera-se por dezoito vezes e o “r” apenas muda de posição (ir-ri). Esse encadeamento sonoro se amplia em “ke-ro-ve-ri-re-ni dar sua ri-za-da”, várias vezes repetida:

queRO, veRiRE
daR Ri
quEro, VerirEne
dAr suA risAdA
Dar risaDa.

São evidentes (e sonoras) as várias correspondências internas, os artifícios e homogeneidades aliterativas e efeitos sinestésicos. O andamento fonossemântico de “Irene”, que no plano aliterativo se baseia na reiteração de séries sonoras equivalentes, no plano rítmico, excetuando-se o primeiro verso, equaciona-se pela alternância intermitente de séries de sílabas acentuadas (sílabas ímpares) e átonas (sílabas pares):

EU não SOU daQUI
EU não TEnho NAda
QUEro VE riREni RIR
QUEro VE riREni DAR sua riZAda

O repetição do vai e volta da mesma letra (construída na base de séries aliterativas) e a melodia passam a sensação de que o sentimento irônico da despedida e seus apelos sensório-emocionais se alongassem nas horas, no espírito do “eu” que fala, e, por extensão, na sensibilidade do ouvinte.

O sentido de lamento e contida gravidade, determinado por segmentos que indicam movimentos migratórios aparece como conteúdo subjacente na composição “No Dia que Eu Vim-me Embora” (gravação em disco compacto de 1968), realizada em parceria musical com Gilberto Gil.

No dia que eu vim-me embora
Minha mãe chorava em ai,
Minha irmã chorava em ui,
E eu nem olhava pra trás.
No dia que eu vim-me embora
Não teve nada demais....

Mala de couro forrada
Com pano forte e brim cáqui,
Minha avó já quase morta
Minha mãe até a porta,
Minha irmã até a rua,
Até o porto meu pai...

Augusto de Campos, na coletânea Musica Popular Brasileira nº 22 (Editora Abril, 1971) observa que “Esta composição põe em evidência a profunda radicação dos dois baianos [Gil e Caetano] na canção nordestina. Versa um tema caymmiano característico – a emigração para o Sul... A poética de Caetano é de uma tragicidade seca e realista, nua e crua, e de uma imensa sutileza vocabular, visível na precisão epigramática com que ele equaciona o sentimento da separação...”. Os segmentos reiterados

minha MÃe chorava em ai
minha irMÃ chorava em ui

mobilizam as interjeições ai e ui , de fundo tipicamente sentimental e trágico, consolidam o paralelismo de repetir-se as mesmas sonoridade em posições idênticas de cada linha. À medida que chama atenção para o verbo “chorar”, com acento de intensidade marcado pela abertura do “a” (choRAva), o tom grave e lastimoso de ambos os segmentos é marcado como que um murmúrio, pelas aliterações de sons anasalados “im, am, em” (quatro vezes), nasais “ñ” (quatro vezes), “m” (doze vezes), chiantes “ch” (quatro vezes), fricativos “v” (quatro vezes) e vibrantes “r” (seis vezes).

Em “Sugar Cane Fields Forever” ( Araçá Azul , 1973), canção essencialmente sensorial e onomatopéica, e que remete ao “Strawberry Fields Forever”, do álbum Magical Mystery Tour (1967) dos Beatles, Caetano promove o jogo aliterativo que mobiliza o significado de “ir” e “rir”: “ir, ir indo” que, várias vezes repetido, resoa como “ir ir rindo” – um prazer de chegada. Constrói-se ainda a onomatopéia do ruído do trem em movimento. Carregadas da imagística que atua na faixa da sensorialidade, são visões fragmentárias e migratórias de uma de um “magical mystery tour”, uma viagem em que o “eu” cancionístico, em consonância com a história de vida do artista, vai “passar fevereiro em Santo Amaro”, sua cidade natal.

•  Aliteração e Ironia


A ironia é figura de retórica que consiste em dar a entender diferentemente do que foi dito. E, em páginas anteriores, deixamos consignado que em Caetano Veloso, normalmente, o jogo aliterativo tende a deslexicalizar a palavra, fazendo-a renascer com um campo significativo mais amplo, vago, ambíguo. Tal acontece, entre outros e aqueles já citados, na canção “Você Não Entende Nada” ( Caetano e Chico Juntos e ao Vivo , 1972):

Traz meu café com suíta, eu tomo,
Bota a sobremesa, eu como,
Eu como, eu como, eu como, eu como...
Você
Tem que saber, eu quero correr mundo,
Correr perigo...

No trecho, o signo “como” reitera-se por cinco vezes. Na primeira vez, é antecedido por “sobremesa”; na última, sucedido por “você”, através da aglutinação semântica “como você”. Oriundos desse artifício, o artista mobiliza, pelo menos, três significados possíveis do signo, que transitam de um para o outro à medida que acontece o processo aliterativo: como (verbo): “bota a sobremesa, eu como”; como (verbo), possuir sexualmente, em linguagem figurada e popular: “eu como você”; como (relação comparativa), vinculando-se ao cotidiano entre marido e mulher: “eu como [igual a] você. Similar transição de significados ocorre com o signo “correr”, em segmento seguinte da mesma canção, repetido por duas vezes e, em cada uma delas, com um significado distinto: “correr mundo” (sentido figurado de migração, viagem); “correr perigo” (sentido figurado de experimentar uma experiência, colocar-se à mercê).

•  Aliteração e Deslocamento Fonossintático


Já demonstramos exemplos de reorganização interna ou permutação de acentos de intensidade, timbres e fonemas como artifícios catalisadores de conteúdos anímicos e estilísticos em Caetano Veloso. O que se quer explicitar a seguir, racionalizando a emoção, é um exemplo de permutação de grupos sonoros inteiros (palavras) dentro do contexto frasal. Trata-se, contudo, de uma forma de aliteração, uma vez que as palavras se repetem, só que em posições diferentes dentro de cada segmento. Analisemos o exemplo latente na canção “Qualquer Coisa” ( Qualquer Coisa , 1975):

Mexe qualquer coisa dentro doida,
Já qualquer coisa doida dentro mexe.

No trecho, Caetano realiza um de seus mais expressivos e belos exercícios de síntese artística. A canção, revestida pelo mistério da linguagem vaga e figurada e até de um enigma simbólico, dado já pelo título “Qualquer Coisa”, utiliza-se de expressões como “não se avexe não, baião de dois” (algo que se faz entre duas pessoas, e que poderia parecer perturbador ou vexatório) e “sem essa aranha / sem essa aranha...” (alusão figurada e chula do órgão sexual feminino) para chegar ao significado sublimatório da fecundidade da vida e criação entre os seres. Se compararmos as duas frases do segmento, verificaremos que a segunda apresenta a ordem de palavras nas posições 2 – 3 – 5 – 4 – 1, que se permutam em relação à primeira. Elas significam, respectivamente, ação (causa) e sua conseqüência (efeito). Temos, pois, na primeira linha, a alusão figurada da cópula, do prazer e transe sexual, na perspectiva feminina (“mexe qualquer coisa dentro doida”), e na segunda, introduzido pelo advérbio temporal “já” (naquele momento, sem demora) a representação da gênese, o milagre da pulsação da existência: “já qualquer coisa doida dentro mexe”. O que era uma ação singularmente física de amor e comunhão entre as pessoas se redimensiona como celebração da nascente da vida, a comunhão genética do ser embrionário, a vida que remexe em botão. Por meio da transação sonora, e intervindo numa ordem já existente (o primeiro verso), Caetano torna aviva o espírito criador e a invenção demiurga próprios do artista; instrumentaliza, pela intuição, a invenção arrebatadora de uma nova ordem de energias comunicativas, ancestral, extratemporal e sublime.

•  Aliteração e Expansão Contínua


Páginas atrás chamei de aliteração a toda recorrência de segmentos sonoros equivalentes e reiterados, em qualquer posição no interior da palavra ou entre palavras e, agora verificamos, permutando-se a ordem das palavras no segmento sonoro. Essa designação parece adequada ao papel das aliterações, cujo equacionamento final é o fluxo rítmico e expressividade sonora da canção como um todo. Em Caetano, além da fluência e ondulância rítmica que se expressam por aliterações como, exemplarmente, em “Tropicália” ( Caetano Veloso , 1967)

eu organizo o moviMENTO

eu oriENTO o carnaAL
eu inAUguro o monuMENTO
no plaALto centrAL do país...

há uma ocorrência de aliteração que, não fugindo do padrão, se realiza por meio de uma espécie expansão escalonada dos elementos sonoros. Além dos numerosos exemplos que iluminam a obra do artista em todos os discos, e alguns já demonstrados no presente texto, acrescento as ocorrências em “Como Dois e Dois” (Roberto Carlos , 1971):

Quando você me ouvir cantar, Venha, não creia, eu não corro perigo, Digo, não digo, não ligo, deixo no ar Eu sigo apenas porque gosto de cantar...  

Quando você me ouvir chorar,
Tente, não cante, não conte comigo.
Falo, não calo, não falo, deixo sangrar,
Algumas lágrimas bastam pra consolar...

As duas estrofes se complementam e interagem em níveis sonoros e sintáticos pela ordem e correspondência interna ou paralelismo dos termos. Tomemos apenas a segunda estrofe. As aliterações no interior do segundo verso (tENTE, cANTE, cONTE) são formadas também pela comutação das vogais “en” “an” e “on”, permanecendo reiteradas tanto as partes iniciais como finais dos signos. Semelhante procedimento ocorre no verso seguinte, com a comutação da sonoridade consonantal de “f” e “k”, mais a repetição do segmento “alo” (Falo, não Calo, não Falo). No mesmo segmento, há a comutação sintática na relação “falo – não falo”, pela ausência e presença do elemento de significado negativo. Processo análogo de expansão fonossintática vamos encontrar na canção “Júlio/Moreno” ( Araçá Azul , 1972):

Uma talvez Júlia
Uma talvez Júlia não
Uma talvez Júlia não tem
Uma talvez Júlia não tem nada
Uma talvez Júlia não tem nada a ver
Uma talvez Júlia não tem nada a ver com isso
Uma Júlia...

Um quiçá Moreno nem
Um quiçá Moreno nem vai
Um quiçá Moreno nem vai querer
Um quiçá Moreno nem vai querer saber
Um quiçá Moreno nem vai querer saber qual era
Um Moreno....

Cada linha se expande na seguinte, como o assentamento das peças dum mosaico, até formar dois desenhos completos ou frases coordenadas: “Uma talvez Júlia não tem nada a ver com isso (e) um quiçá Moreno nem vai querer saber qual era”. A monotonia de um segmento sonoro expandindo-se ou reorganizando-se em duas seriações repetidas parece refletir outra vez o sentimento de um tempo que se alonga na existência. Assim que, no jogo de palavras e por meio delas, algo cresce de modo incessante e traz uma indagação: menina ou menino? Exprime, análogo à experiência biográfica do artista, a doce angústia da espera pelo primeiro filho, um quiçá, Moreno ou Júlia? Ambos os blocos escalonados parecem representar a vida em gestação, um estado embrionário que cresce, formando feixes de segmentos sonoros sucessivos, que se vão amplificando. Sugerem o ponto de partida de uma dúvida, um “talvez”, um “quiçá” que se materializa na forma do sujeito no mundo, registrado, institucional e com nome próprio (Júlia ou Moreno). O fenômeno sonoro fecundado nos dois blocos da canção, em seu ritmo temporal, quando visualizado no espaço branco papel, configura uma ordem rítmica, simulacro do sentido de monotonia e passagem do tempo em progressão. Outra vez Caetano dialoga com representação “verbo-voco-visual” da poesia concreta.

•  Aliteração e Superlativação


Caetano realiza um incessante jogo transitivo e energético de palavras, às vezes até como se elas fossem peças de um quebra-cabeças em que seria possível mudar-lhes as cores, formas e texturas, deslocá-las de posição pra se empreender um novo desenho de fecunda significação e beleza. As aliterações, reiterações e transposições de segmentos sonoros, sempre de maneira inventiva e surpreendente, ao redimensionar o estrato sonoro, por extensão e conseqüência redimensiona o sentido nocional, emocional, estimulante e delicadamente estético da canção. A aliteração funciona na intensificação de um sentido, ou pela associação de idéias, como já vimos ( mormaço , março , abril ), ou pela gestação ascendente de um significado afetivo, em que o sentido original se deslexicaliza pra fazer nascer um sentido novo e de valor superlativo. Este último artifício, até certo ponto comum na poesia e na música, é também freqüente em Caetano Veloso. Sua estilística da afetividade superlativa é de distinta natureza quando comparada com o superlativo retórico ou gramatical: qualidade em grau mais alto, ou no mais alto grau. Verifiquemos certos segmentos sonoros em “Lua, Lua, Lua ( Jóia , 1975):

Lua , lua , lua , lua ,
Por um momento, meu canto contigo compactua...
Branca , branca , branca, branca ...

A simbologia de lua é essencialmente feminina, evoca a face emocional, intuitiva, sensorial, irracional e afetiva do ser. Brilho no meio do escuro, percepção por reflexo, inspiração amorosa, iluminação mística e qualidade mutante do ser em suas quatro estações, a lua é invocada pelo cancionista. E lhe confessar que “por um momento, meu canto contigo compactua”. Necessário se faz lembrar que em Caetano, em contrário a Chico Buarque, preside a solaridade do método criativo apolíneo: rigidez formal, luminosidade, equilíbrio, eurritmia e controle da composição pelo domínio das emoções. Nesse canto, e no momento consagrado pelo artista, temos a evocação do que seja uma das faces sua arte. Na primeira linha, pois, atualiza-se o superlativo da substância (a lua); na segunda, o superlativo da qualidade (branca). Em ambas, a repetição sonora promove a transição de um significado a outro, ou a passagem do que era objetivo e pragmático (a lua, a cor branca) em conteúdo super-ativado. O valor superlativo implica, pois, compreendermos a elevação da palavra, do estado de dicionário ao estado de poesia, do valor material que têm os signos à evocação imaterial e simbólica das coisas e dos seres. É com esta chave ou artifício que se compactua uma parcela significativa do cantar artístico em Caetano Veloso.

Em “Alguém Cantando” ( Bicho , 1977),
Alguém cantando longe daqui,
Alguém cantando longe , longe ,
Alguém cantando muito,
Alguém cantando bem,
Alguém cantando é bom de se ouvir...

Além da sonoridade paralelística, em que se reiteram por cinco vezes os segmentos “alguém cantando”, o sentido de distância se intensifica no segundo verso, pela reduplicação do segmento “longe, longe” (muitíssimo distante). O cancionista redimensiona o sentido de uma coisa longínqua, e esta interage com as qualidades de [cantar] “muito”, “bem” e “bom”. A canção evoca, com nostalgia, todos os cantares, o pregresso afetivo que ressoa como tonificador de uma recordação ancestral, vaga alegria, oculta crença ou beleza distante que povoa o presente, nostalgicamente vivido. “Alguém Cantando” parece uma chave pra se entender a fase posterior de Caetano Veloso em que, em vários discos, dedicou-se a “reler” ou reinterpretar, sempre com a emoção à flor da pele, canções nostálgicas e tradicionais do passado, brasileiras, portuguesas, espanholas, latino-americanas, italianas.... É como se, em espírito, se desenrolasse nele a fita dolente, esperançosa e contínua do que veio a intitular um de seus discos: Cinema Transcendental (1979). Na capa, o artista contempla o mar e o horizonte, projeta-se no espaço entre o aqui e as profundezas do sonho, o finito e o infinito, o palpável e o afã pela natureza essencial das coisas e dos seres, o físico e a gravidade do que flutua, em donde rebusca a intemporalidade e universalidade, matéria sensível de sua arte.

Temos visto que a superlativação em Caetano ocorre com signos que indicam substância e qualidade. Examinemos uma ocorrência de aliteração que superlativa o próprio superlativo:

Toda essa gente se engana
Então finge que não vê
Que eu nasci pra ser o superbacana,
Eu nasci pra ser o superbacana,
Superbacana , superbacana , superbacana ,
Super-homem, superflit, supervinc, superist, superbacana ...

“Superbacana” (Caetano Veloso , 1967).

O personagem, indicado pelo pronome “eu”, procura individualizar-se e, ao mesmo tempo, ironiza os clichês de sua época. Devido ao abusado uso, o prefixo “super” teve seu semantismo desgastado pela pobreza vocabular de uso comum e em meios publicitários. Ocorre um sentido aproximado a “eu nasci pra ser um super-superbacana (euforia irônica) numa época em que o marketing valorizava marcas e rótulos como superflit, supervink, superist, super-viva, supershell. Esses significados resvalam noutros superpoderes da época, como a censura dos formadores de opinião reacionários e os da ditadura em geral que se havia instalado no país.

A identidade do indivíduo e reação contra ser visto como “massa” é um dos conteúdos mais latentes na obra de Caetano. Daí, ao que parece, outra importância sociopolítica de sua obra que, em tempos de refluxo das formas antigas, marcha contra os clichês da época. Tal motivo se apresenta como elogio à brasilidade, alegorizado pelo atleta Pelé, sua notoriedade, força e genialidade sob a pele escura, a dança e um pierrô na avenida em pleno palco aberto do carnaval:

No meu coração da mata
Gritou Pelé , Pelé ,
Faz força com o pé na África.
O certo é ser gente linda
E dançar, dançar , dançar ,
O certo é fazendo música.
A força vem dessa pedra
Que canta Itapoã,
Fala tupi, fala iorubá.
É lindo vê-lo bailando,
Ele é tão pierrô , pierrô ,
Ali no meio da rua, lá.

“Two Naira Fifty Kobo” (Bicho , 1977).

•  Aliteração e Modulações de Timbre


“Mas se ela não quis meu sorvete, / por que grava-la em videocassete / jogar confete...”, pergunta o cancionista em “Sorvete” ( Velô , 1989). Outro artifício da primeira fase de Caetano Veloso, e responsável pela fluência rítmica e força interativa entre som e sentido é a maestria com que alterna, nos contextos sonoros polares e intraversais o timbre fechado e aberto das vogais. Em “Tigresa” ( Bicho , 1977), o cancionista singulariza a estereotipia da rima, promove um jogo de vai e vem sonoro, em harmonia semântica com o paradoxo final: “o mal é bom e o bem cruel”:

Uma tigresa de unhas negras
E íris cor de mel ,
Uma mulher , uma beleza
Que me aconteceu ,
Esfregando a pele de ouro marrom
Do seu corpo contra o meu,
Me falou que o mal é bom e o bem cruel .

Notam-se, na politonia sonora de admirável eficácia rítmica, presenças de modulações abertas e fechadas intercaladas (mEL, acontecEU, mEU, cruEL) e misturadas (tigrEsa, nEgras, mulhEr, belEza, pEle) propiciando ao todo uma sonoridade politonal.

Em “Sugar Cane Fields Forever” ( Araçá Azul , 1973),

Vem comigo no trem da leste,
Peste, vem no trem
Pra Boranhém...

as aliterações intercalam os timbres nasais (trEM, vEM, trEM, boranhÉM) e timbres abertos (lEste, pEste), produzindo rítmica e onomatopéicamente o ruído de um trem em movimento. Em “Você Não Entende Nada” ( Caetano e Chico Juntos e ao Vivo , 1972), novamente se alternam modulações abertas e fechadas (consOla, aflIta, cebÔla, bonIta), com semelhante efeito dinamizador das rimas:

Quando eu chego em casa nada me consola,
Você está sempre aflita,
Lágrimas nos olhos de cortar cebola,
Você é tão bonita ...

Em “Baby” (disco-manifesto Tropicália, 1968), registrando lado jovial da existência, em contraposição à penumbra emanada do terrorismo moral contra o cidadão e a arte, e o Ato Institucional nº 5 da Ditadura Militar (1964-1984), Caetano exorta os sabores e descontração da vida. Leda ignorância terem tachado esta letra de alienada, em tempos de canções engajadas e de protesto. Seu remeximento fônico, modulações, colorido sonoro e descontração são perturbadores, desconcertantes e revolucionários:

Você precisa tomar um sorvete
Na lanchonete, andar com a gente,
E ver de perto,
Ouvir aquela canção do Roberto...

Chamam à luta pela paz; não acumulam o ressentimento e a dor, pois como afirmou Paulo Freyre, isto é aninhar o inimigo dentro do coração. Em “Épico”, novamente no disco Araçá Azul (1973), o cancionista intercala modulações fechadas e abertas, outra vez enfatizando aproximações e distanciamentos de sentidos:

Destino faço não peço,
Tenho direito ao avesso,
Botei todos os fracassos
Nas paradas de sucesso ...

•  Aliteração e Modulações Acentuais


Repetimos que as aliterações são emblemáticas na primeira fase de Caetano Veloso. Tudo parece catalisar o afã sinestésico de aproximar a expressividade sonora da palavra à sonoridade da melodia, arrancando desse enlace efeitos que ampliam o estrato expressivo da canção. “Leãozinho” ( Bicho , 1977) é significativa mostra desse procedimento estilístico:

Um filhote de leão, raio da manhã ,
Arrastando o meu olhar como um ímã.

Essa é outra canção autobiográfica, pois o autor é do signo de Leão no zodíaco, registra o olhar de Caetano sobre si mesmo, como personagem leonino. Criador e criatura se contemplam, narcisicamente, no vai e vem de um “raio da manhã ”. O acento de intensidade que desenha a ondulância rítmica exerce impulso progressivo, de abertura e euforia do amanhecer luminoso. Em seqüência, como num sonho, ou num zoom-out cinematográfico, o outro segmento é regressivo, como que movido pela atração retroativa de um ímã. O efeito se constrói pelo deslocamento ou alternância do acento de intensidade: maNHÃ – Ímã (o primeiro acento é oxítono; o segundo paroxítono)

Na última estrofe há outra alternância acentual, de extraordinário efeito fonossemântico:

Gosto de te ver ao sol, leãozinho,
De te ver entrar no mar,
Tua pele, tua luz, tua juba.
Gosto de ficar ao sol, leãozinho,
De molhar minha juba,
De estar perto de você e entrar numa.

No segmento, encontra-se reiterada, por quatro vezes, a rima parcial composta pela arquitetura vocálica U-A (nUmAr, jUbA, jUbA, nUmA). Além do deslocamento do acento rítmico, evidente na sonoridade de (numAr – jUba), é de se admirar a expressividade das relações entre os versos “de te ver entrar NO MAR” (numár) e “de estar perto de você e entrar numa” (núma). No primeiro verso, a sensação experimentada pelo personagem é de expansão, liberdade, contato com a imensidão. A sinestesia rítmica, com o acento recaindo sobre a vogal aberta “a”, além de imitar o barulho das ondas, produz a idéia subliminar de progressividade, impulso adiante. Convida à sensação cosmológica de abertura e contato com o infinito (nuMAR). Em contrário, no outro verso (“entrar numa”), que significa ensimesmar-se, mergulhar no interior do ser, o acento de intensidade se desloca para a primeira sílaba, exercendo, em harmonia com a faixa semântica, impulso regressivo. Em síntese, enquanto num verso o personagem se abre para o mundo; noutro, se fecha em vivências interiores. Caetano, na constante busca de melhor expressividade possível com a economia máxima de palavras, redimensiona o signo “numa” (“ficar numa boa”, entrar dentro de si, enxergar o efetivamente leonino) para aludir ao nome com que é conhecido o leão, amigo de Tarzan, herói da história em quadrinhos. Nesse sentido, “estar perto de você e entrar numa” é, figurativamente, “estar numa” e, principalmente “ser Numa”, o próprio leão.

Outro tipo de alternância do acento de intensidade verifica-se na canção “Odara” ( Bicho , 1977):

Deixa eu dançar
Pro meu corpo ficar odara,
Minha cara,
Minha cuca ficar odara ...

Fácil sentir o remexer das modulações e alternâncias (uma oxítona e três paroxítonas): “dançAr, odAra, cAra, odAra).

Não é muito claro o sentido da palavra “odara”, embora, devido ao sucesso da canção, rapidamente tenha-se ajuntado ao vocabulário descontraído da juventude em décadas posteriores. Insinua a idéia de ser bom, sentir-se feliz, estar de bem com a vida. Segundo o artista, provém do dialeto ioneba, africano. Era um regionalismo que se fez nacional. Indica, sobretudo, uma jovialidade ostensiva e poderia alegorizar o fervor denso e eletrizante, da inquieta e inquietante obra de nosso cancionista.

“Flor do Lácio Sambódromo / Lusamérica latim em pó / o que quer, o que pode esta língua?” (“Língua”, Velô , 1989), indaga Caetano. É a língua portuguesa como “flor do lácio”, o latim em pó do cone sul, a língua brasileira amaciada pelo encontro das raças, como exprimiu Gilberto Freire. É Camões e o carnaval brasileiro. É busca intermitente da eficácia máxima pela palavra e sons... Encerro por aqui e aqui recorro ao suspirar de um personagem. É Caetano, como o criador, sendo admirado por uma criatura, ao ouvi-lo. Solene e intimista, e ao emocionar-se com o desempenho do artista numa apresentação em Madri, comenta um personagem do filme Hable con Ella (2002) de Almodóvar: “Ese Caetano me ha puesto los pelos de punta”. É o máximo – traduziriam – deixa-me com a sensibilidade à flor da pele. Ele se mantém fora das opiniões padronizadas; é o doce bárbaro de todas as mídias, do disco às telas que iluminam a vida. Desfolhamento, em alta voz, de um montão de livros. Vale.

Discografia Consultada, em Edições Brasileiras  

Domingo
, 1967 – Caetano Veloso , 1968 – Tropicália , 1969 – Caetano Veloso , 1969 – Barra 69 - Caetano e Gil ao Vivo , 1969 – Caetano Veloso , 1971 – Transa , 1972 – Caetano e Chico Juntos ao Vivo , 1972 – Araçá Azul , 1973 – Temporada de Verão ao Vivo na Bahia , 1974 – Jóia , 1975 – Qualquer Coisa , 1975, Doces Bárbaros , 1976 – Bicho , 1977 – Muitos Carnavais , 1977 – Muito Dentro da Estrela Azulada , 1978 – Maria Bethânia e Caetano Veloso ao Vivo , 1978 – Cinema Transcendental , 1979 – Outras Palavras , 1981 – Brasil , 1981 – Cores e Nomes , 1982 – Uns , 1983 – Velô , 1984 – Totalmente Demais , 1986 – Caetano Veloso , 1986 – Caetano Veloso , 1987 – Estrangeiro , 1989 – Circuladô , 1991 – Circuladô ao Vivo , 1992 – Tropicália 2 , 1993 – Caetano Veloso - Marcianita , 1995 – Fina Estampa , 1994 – Fina Estampa ao Vivo , 1994 – O Qu4trilho , 1995 – Tieta do Agreste , 1996 – Livro , 1997 – Prenda Minha , 1999 – Omaggio a Federico e Giulieta ao Vivo , 1999 – Noites do Norte , 2000 – Noites do Norte ao Vivo , 2001 – Eu Não Peço Desculpa , 2002.

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