Saiu nos jornais de Bruzundanga que se deu entrada na Suprema Corte a primeira medida cautelar contra ao fim do nepotismo no Judiciário. Em vetusto dialeto forense, como convém, são reclamantes a mulher, filha e genro de um Juiz de Direito. Tais agregados arrastam dos cofres públicos 6 mil reais cada, traduzindo-se à designação monetária do Brasil. É que resolução do Conselho Nacional de Justiça resguarda o privilégio somente aos descendentes papais.
Duas leis federais proíbem nepotismo em Bruzundanga. Mas – ora leis! –, e os direitos adquiridos, e a fortuna de tão nobres parentes? De Norte a Sul, foi grande a reação nos tribunais provinciais de justiça. Corregedores reunidos em Maceió (citando-se uma capital daqui) aprovaram “Carta de Repúdio” à Resolução. O presidente do tribunal potiguar julga-a “espúria”; um desembargador paulista a denuncia como golpe à democracia, pois retira dos tribunais estaduais a autonomia de nomear quem bem entendam aos cargos de confiança na Justiça.
“Os Bruzundangas”, publicado em 1923, é obra póstuma de Lima Barreto. Satiriza uma fictícia nação onde o escritor teria residido. Seus capítulos enfocam, entre outros temas, a diplomacia, a Constituição, transações e propinas, os políticos e eleições em Bruzundanga. Critica os privilégios da nobreza, o poder das oligarquias rurais, a futilidade das sanguessugas do erário, desigualdades, saúde e educação tratadas com desdém, enfim, mazelas parecidas às de um país real. Ao lê-lo, tem-se impressão de que o escritor não se fez arauto de seu tempo; o Brasil é que patinou nos descaminhos de si.
Com malandrice carioca e estilo ágil, próximo da caricatura e zombaria, o afro-brasileiro Lima Barreto é mestre da ficção de escárnio. Nas raízes do imaginário país grassam oportunistas, apaniguados, retrógrados e escravocratas de quatro costados. Sobre os usos e costumes das autoridades, escreve que não atendem às necessidades do povo, tampouco lhe resolvem os problemas. Cuidam de enriquecer e firmar a situação dos descendentes e colaterais. Diz: não há homem influente que não tenha parentes e amigos ocupando cargos de Estado; não há doutores da lei e deputados que não se considerem no direito de deixar aos filhos, netos, sobrinhos e primos gordas pensões pagas pelo Tesouro da República. Enquanto isto, a população é escorchada de impostos e vexações fiscais; vive sugada para que parvos, com títulos altissonantes disso ou daquilo, gozem vencimentos, subsídios e aposentadorias duplicados, triplicados, afora os rendimentos que vêm de outras e quaisquer origens.
Ao presidente de Bruzundanga, que deve ser um deslumbrado e completo idiota, chamam-no “Manda-chuva”; à justiça, “Chicana”. A Carta Magna redigida por espertos (e não expertos) explicita um providencial adendo: “toda a vez que um artigo ferir interesses de parentes de pessoas da ‘situação’ ou de membros dela, fica entendido que não tem aplicação”. No fundo, todos flertam com a “situação” porque ela garante o continuísmo. À plebe desmemoriada e ignorante, pra que não fique gritando “viva o doutor Clarindo!, viva o doutor Carlindo!, viva o doutor Arlindo! – quando o verdadeiro nome do doutor é Gracindo”, criou-se a “Guarda do Entusiasmo”, constituída de dez mil indicados sem concurso, uniformizados “de povo”, com função de disciplinar e reorientar as aclamações e vivas da multidão.
Muito mais é Bruzundanga em seus cânones sociopolíticos, religiosos e culturais, e no atraso visceral – conforme se lê no prefácio – de uma nata enquistada no canibalismo simbólico da “Arte de Furtar”: os maiores ladrões são os que têm por ofício livrar-nos de outros ladrões. E, assim, nos valos da incúria, sobrevive um povo. Eis um enredo que propicia ao leitor, ontem e hoje, a acareação ritual do seu país (Afonso Henriques de Lima Barreto, 1881-1922).
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