O diabo sopra em meus ouvidos. São estropícios, assuntos particulares. Algo me aconselha a não compartilhá-los, pelo menos nesta hora. Penso: nada melhor que a felicidade para embelezar o rosto. Só que, neste instante, qualquer tema que brote de dentro teria a feição pesarosa dum cronista constipado. Respiro em arpejos e encorajo-me a prevenir: esta crônica, se é que se lhe pode dar esse nome, fala literalmente de nada.
Consola-me o que Lourenço Diaféria escrevera, talvez pra celebrar seu ofício de jornalista-escritor: “a crônica existe para dar credulidade aos jornais, saturados de notícias reais demais para serem levadas a sério. Ela descobre pessoas na multidão de leitores”. Então, com sua vênia e paciência, mais que “distinto público”, seja uma pessoa e tenha nesta conversa fiada o contrapeso às durezas desta vida. Façamos uma trégua aos crimes, indecências políticas, promiscuidades ocultas, alfinetadas rancorosas e golaços em geral.
Pronto. Percorremos um bom tanto deste espaço do jornal e o inútil tempo de um domingo abafado. De que falava? Ah, sim, da minha constipação. Vou ao pai dos burros e constato: constipação é um estado produzido por alteração do trânsito intestinal, gerando dificuldade de evacuação; o mesmo que prisão de ventre. Mas, diachos, desde que me conheço por gente estar constipado é o que semelha ao resfriado, com calafrios e dores no corpo, cabeça inchada e as narinas em bicas, exatamente o contrário de entupimento e obstrução. A constipação que me pega desanca nas áreas de cima; a outra, do dicionário, enruste nas zonas de baixo. Uma, faz os ouvidos latejantes; a outra, um silêncio misterioso e ruminante. Uma cura-se ao fim de seu próprio tempo; a outra exige um eficaz laxante. Fernando Pessoa escreveu: “Tenho uma grande constipação, e toda a gente sabe como as grandes constipações alteram todo o sistema do universo, zangam-nos contra a vida, e fazem espirrar até à metafísica”. Ora, se desde minha infância e se até o grande poeta aconselha que nos abafemos na cama em aspirinas, então por que – raios! – constipação é sentir-se empachado, entupido nas entranhas?
Um enxame de vírus me atordoa. A coriza me aporrinha e o pensar se resume ao quociente de um espirro: sou um constipado à moda antiga! Não padeço de paralisia abdominal, apesar do que prevê a medicina. O refluxo é comigo, no tórax, e nada, absolutamente nada, suscita uma crônica que verta um grão de poesia, idéia interessante ou frase daquelas que cantam sem que tenhamos o trabalho de ouvi-las. Deixemo-la – a crônica – inexistente e que o diabo assopre até perder o fôlego. Não me dará a vida de ter o que raciocinar e dizer, nem faria diferença ao nhenhenhém insosso de um domingo constipado, assim, de eu para mim, real demais para o meu gosto. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação
em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal
TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de
Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto.
Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais
de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
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