PREMEDITANDO UM BREQUE

Há algum tempo, Frei Betto publicou um daqueles seus artigos fundamentais. O título era, se bem me lembro, "Políticas do Corpo". Punha em pauta dois assuntos: num deles, a segregação de classes e grupos sociais de famintos. Chamava atenção para o enorme destaque que se dá aos setores que se mobilizam contra a Aids, e, em contraste, à pouquíssima divulgação aos que lutam contra a fome, embora esta esteja matando grande parte da humanidade. Mas, enquanto a subalimentação atinge o pobre-diabo e, portanto, dá pouco status aos participantes de Fundações e Ongs, a Aids não faz distinção de classes. Alcança também os ricos. Todo santo dia rezamos o "Pai Nosso / Pão Nosso", lembra Frei Betto. E pergunta: como o Pai pode ser nosso, se continuo pensando e agindo como se o Pão fosse somente meu? O segundo tema, decorrente do primeiro, é a desmedida atenção que se dedica ao corpo. As revistas e televisões exaltam a exuberância erótica dos corpos, sem igual espaço para as idéias, valores espirituais, utopias e subjetividades. Há mais academias de ginásticas que livrarias; prevalece o ideário pós-moderno de que o parecer é mais importante que o ser. Morreremos esbeltos e saudáveis, sem nenhuma celulite - observa o escritor - mas ocos por dentro, na cultura, na arte e no espírito.

Se o nível do pensamento e espiritualidade é mais ou menos equiparado ao desempenho e bom uso da língua nossa de cada dia, é certo concluir que quanto mais atrasados e displicentes formos em relação ao idioma, mais capengas e pobres seremos de espírito. Há meses Jô Soares entrevistou a famosa modelo Gisele Bündchen, musa da moda e das passarelas. Entretida nas atenções à sua cachorrinha, da qual não se desgruda, ouviu esta observação: "Puxa, que chique, Bündchen com trema". Ao que ela respondeu triunfante: "Um trema não, Jô, ...dois!".

Dia desses, a ex-mulher do meu amigo, que o traiu com alguém mais bem parecido, me ligou contando que o filho teria que levar à escola dois quilos de alimentos perecíveis, pra dar aos pobres. Supondo que a sociedade ainda não chegou a esse nível de infâmia e sadismo, perguntei-lhe se não seriam alimentos não-perecíveis. Meu veneno triscou-lhe o corpo, quicou na parede e caiu no chão. Caiu-lhe também a ficha, sem dar pelotas.

Você já participou de assembléias de condomínio, daquelas de famílias remediadas, ou de ricos emergentes? Não participou? Então, evite-as. O novo rico possui características que emergem fogosas nas reuniões condominiais. Uma delas é o mau humor, expresso no punho cerrado e a guarda subida, e a escancarada sovinice; ah, Molière reformularia sua peça "O Avarento"! Outra, é o destrambelho de falar e falar "a nível dos poblemas", e fazer "colocações" redundantes e autoritárias, como se não estivesse num com-domínio, mas num domínio exclusivo e somente seu. E então, o camarada, não tendo a ilustração e o refinamento do rico, e, claro, querendo afastar-se da pobreza de onde veio (pois imagina que só pobre fala errado), capricha no português, e destampa uma enxurrada de impropérios verbais, delírios e barbaridades sintáticas, num tumulto e tempestade contra a Língua Portuguesa.

No domingo de carnaval assisti ao desfile da Escola de Samba Unidos da Tijuca. O enredo era "O Sol Brilha Eternamente sobre o Mundo da Língua Portuguesa". Depois de ouvir comentário do carnavalesco da Escola de que o português é a terceira língua mais importante do ocidente (o que parece um caso crônico e terminal de lusofilia), a repórter entrevistou um dos destaques, ou "personalidades" do desfile. Era uma dessas jovens bem ditas e que ditam modas, aparecem nuas no carnaval e realizam "trabalhos" nos "ensaios fotográficos" para revistas. E faturam alto, por conta das leis de mercado, na Política Econômica do Corpo. Sob holofotes, disse a foliona, a acenar o substancioso curriculum vitae, que tem lugar cativo nas mais altas alegorias do sambódromo; e deixa tudo por conta de seu figurinista; e vive praticamente dentro dos aviões, pelas passarelas da Europa e México, pois "fazem sete anos" que mora na Espanha, divulgando nosso país. E, cortada pelo constrangimento da repórter, mas premeditando um breque de efeitos vocabulares, nos mandaria mais um petardo na inteligência: "com o samba nas veias, e o Brasil no pé", ou melhor, "com o samba no pé e o Brasil nas veias", ou melhor, "com o samba no Brasil e o pé nas veias", ou melhor...

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Romildo Sant'Anna, Livre Docente, escritor, pesquisador da cultura brasileira, curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' em São José do Rio Preto (São Paulo/Brasil)