No escurão da caverna, são olhos avermelhados. Pré-históricos deitados, investindo, bois pensativos, tantos bois sacramentados. Nuns lugares, adorados; noutros lavram no arrasto do arado. E nos eitos desta vida boi pasteja e boiadeiro queima o alho... É bondade, sossego e doação, o boi. Impulsor de rebanhos de gentes, devota a sina de doar alma de si, o corpo e berro. A fala sua com humanos e entre os bois é soturna, desprendida do fundo acasalado no vento, lá nos ermos do sertão. Boi é paciência, lição de renúncia. Até no instante do ferro ardente que o fere como ferem feras. Ou no rito de apunhalá-lo no pescoço, e tombá-lo prostrado, no visgo escorrendo em lanhas qual bisonte sangrado. Boi é manso no repasto, e há o que desembeste enfezado e aplique carreirões. Mas, no geral, boi não rumina mágoas dos néscios desta vida.
Ajuntamento de boi é gado, e na andança, boiada. Tem boi de tração, gado de corte. Humano de rua só entende de comer o boi. É peça, marca, carne rija em arpões dependurada. O saxofone do berrante e o canto mourisco dos aboios deixam boi e boiadeiro comovidos, vaidosos, singrando rasante os cerradais do mundão. Mugido é cantar solitário, recordando jeito honesto e compenetrado, lânguido e pungente. Boi é camarada compassivo, delicado, que se apega aos conhecidos lugares da existência. Aprecia os homens no sentido diferente que lhes dão os burros. No olhar fumê, vidro embaçado, caboclo se vê bem no fundo, apequenado. Retendo-lhe o retrato, boi procura no silêncio a diferença de hierarquia. Seu olho é selo raro, desprendido de ansiedades. Que nem caboclos se assuntando nas surpresas do destino.
Touro é grandalhão que não sacia; garrote é rufião sem juízo, no faro desengonçado de sentir fêmea no cio. Aos cavalos chamam animais, aos bichos do terreiro, criação. Boi é boi, ruminando entre gentes no feitiço de existir. No alvoroço da vida só de bois, há os garrotes infernizados, molecotes marruás, bois bravios, ladinos, presumidos e milagrosos. Na boiada, procissão cabisbaixa ao matadouro, murcha-se-lhe a glória, vira gado, gladiador subjugado. É boi, mais boi e boi, feito multidão boiando na calçada, boiada exclusa. É gado informe e movediço, coletiva escuridão.
A distância de uma légua na toada aboiada da boiada é lonjura sem fim. São tempos de bois e boiadeiros fruídos, enlevados. Tem boi de ano, boi de era, de força, boi de engorda, boi de canga e de cambão. Tem de correia, boi de lote e estimação, boi de piranha e aqueles de cobrição. Evém um boi de moenda, girante, remoendo o amargo da sina. A cana é a rapa dura esmagada, estorricada, alijada de futuro sem chegada e sem caminho. Boi de carro é persistente, vagaroso e remanchão. Juntas de bois são cordas de viola no carroção do carreiro. Cocão largo geme grosso, cocão quente trina fino, doído. Carreiro e bois bóiam nas pirambeiras, desviando de atoleiros, cumpridores no diário do farnel. Os da ponta suspiram a canção da jornada. São de guia, conversam com o carreiro, encaminham a fila sonolenta e penserosa só de bois. As duplas de subguias, chavias e cabeçaios são retesos da tração. Recordam nação plangente, gemente e aos solavancos, amarrada pela canga, carregando-se no carroção só de bois.
Humanos por questão atrelam-se ao jugo mítico bovino. Homem de touro é fecundo como a terra, e pessoa corpulenta é gente-boi. Mulher de boi tá de paquete e o camarada boi é traído. Mandam que algum vá amolar o boi ; dizem que ter boi na linha é lida insana pela frente; pegar o boi pelos chifres é enfrentar certo problema. Boi sonso é alguém andando a esmo, bezerro alongado da mãe. Boiama, boiada, rebanho é gente conduzida, maltratada e oprimida tal um boi a fenecer. Tudo alembrando retirante enfileirado, amontoado em fieira. Nas rotinas ondulantes da cidade, um caboclo ensimesmado se desprende aluado no pensamento de si: “sou como rês desgarrada, nesta multidão boiada caminhando a esmo”. É bumba, meu boi bumbante, bumbá. Olhos alumiando no escurão da caverna. Nos altares dessa vida, gente apreceia boi; o boi ora pro nobis. |