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Antigos gregos acreditavam que poesia é pintura falada; a pintura, uma poesia em silêncio. Que achado! Eis o mote da crônica. Aí relembro de uma indagação no prólogo de “E la Nave Va”, de Fellini: “Cronicar é dizer o que acontece. Mas quem sabe o que acontece?” Nessa areia movediça, o cronista é o falador de quase tudo, fingindo-se sabido. Somos inexoravelmente equivocados, encarnação da dúvida; a terra flutua girante, e não a sentimos mover. E o tempo rola na tela do infinito... o tempo, visgo da crônica e da vida. Que grande desatino escrever sobre Arte, simulacro da existência, no sem-fim embaçado do existir. Que sabemos? O que nos passa ao arredor? Melhor emudecer, como o cronista sensato, que sorve o tempo a contemplá-lo. Mas, impulsivo e tagarela, enrola-se na volúpia das palavras. E ei-lo, por encomenda do desafio, parolando indiscreto sobre artes e artistas da cidade. Expressões como “arte” e “artista” viraram jargões, e não conceitos. São por demais judiadas, com perdão aos imolados do planeta. Que paradoxo! Diante da feiúra, arte é beleza; contrária a judiação. Engenheiros concebem uma ponte e pilastras feito pedra e, já na tela do computador, a qualificam como “obra de arte”. Nos “botequins culturais”, desses montados no sonho altruísta de comunhão e delícia, vêem-se, vez por outra, quadros mal ajambrados nas paredes, inertes e destituídos, as paredes e os quadros. E a mescla de vozeirio e tilintar dos copos se ajunta à autocelebração angélica de quem se imagina artista. Jornais, no diapasão do burburinho, regozijam na chamada de capa: “O artista plástico Beltrano de Tal expõe suas obras!” Ah, que desapreço às artes e artistas do mundo, depauperados no dialeto inculto e belo do Brasil! Uns estampam formas da natureza, e as almejariam brotadas nos campos de Van Gogh. Outros presentificam o realismo prosaico de remotas paisagens e casarios decantados na nostalgia, além de incríveis “naturezas mortas”. Uns, no embaçamento do aqui, e no arremedo de Dalí, descoisificam toda gente e toda coisa, fingindo o surreal; outros dão luz a imagens que lembram tudo, na minestra insossa dos estilos. Em meio à vastidão desses estetas, surgem os naïfs. Ah, quantos tortuosos naïfs, uns humildes, outros arrogantes, que não sabem desenhar, nem pintar, nem colorir... e se qualificam legítimos arautos de nossas raízes. Na retórica dos políticos, esta é a “herança maldita” de geniais Josés, Antônios e Silvas do país. “Primitivistas” de tal naipe não são recentes. Ingênuos, apoitaram nas “belas artes” bem antes que o aduaneiro Rousseau. Cervantes anotara que, numa rota do Quixote, deparou com um celebrizado “artista” que, quando pintava um galo, obrigava-se a escrever no rodapé: “isto é um galo”. No frisson da sociedade, e convenientes à simploriedade geral, decoradores de ambientes encomendam a certos fazedores de quadros obras por metro quadrado, pra combinar com cortinas e móveis dalguma sala. Temas, técnicas e policromias pouco importam; tampouco mensagens e conceitos. Pode ser a geometria de um risco enigmático, ou um punhado de areia misturado à tinta, no espaço hesitante de uma tela. Ou rabiscos errantes de pincéis e espátulas formando saliências e texturas, a inscrever vagas imagens, dissonâncias angulares, auras simbólicas e fugidios laços. Assim, as formas e conteúdos interiorizados do ser, seiva sublime das artes e artistas, deságuam num beleléu ardente, o descomunal balde de nada. Pegados às paredes, são corpos desalmados, matérias inertes, ainda que em vistosas e sedutoras aproximações com a idéia de um chiquê duvidoso. O importante é que dêem ilusão de arte abstrata, em impressionante diálogo pós-moderno com as cores do sofá. Cidades de porte médio catalogam um cento e meio de artistas plásticos, nem mais nem menos que a esplendorosa renascença de Roma, Veneza e Florença. Não são pintores comuns que partilham com amigos e parentes o passatempo deliciante, difícil e delicado de pintar. Não. São os que se consideram artistas mesmo, com galardão e referendo nos jornais e catálogos. Nunca sentiram a angústia do artista frente a arte. Que fenômeno, que brado retumbante! Que máximo pra uma cidade média! Cidade girante num vernissage carnavalizado, que renega seus poucos artistas de valor, e escreve a crônica de uma nave que vai, e vai, qual mamute felliniano. Lento, singrando de costas para a história da arte do mundo. Mundo velho de guerra, ancorado sob a luz da beleza, eterna glória do ser, contrária a toda judiação. Quem sabe o que acontece, quem sabe? |
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. A crônica "Naïfs do Brasil", que
figura neste livro, é abonadora do verbete "naïf" do Novo Dicionário Aurélio
Século XXI. |