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ROMILDO SANT'ANNA
Anjos Caídos
 

O diacho é negra pulsação no coração dos povos. São lendários os seres angelicais e santificados do cristianismo; o tinhoso, ao contrário, é mítico, e sobrepassa os tempos e confins do mundo, fincado na raiz das trevas. Demonstra-se em aparência na figura de um jovem sagaz, falastrão, atrevido e bonito. Mas, despido de ardilosas metamorfoses, o demo é meio homem, meio cabra, orelhas pontudas, tem chifres e asas, e a ponta da cauda bifurcada. Denomina-se também Mefisto, Satã, Capeta e Demônio. ...E Lúcifer - o que carrega a luz. Vive no mundo inferior, porão dos ínferos: os infernos. Anjo rebelde precipitado no abismo, pai da mentira, da fraude e da calúnia, príncipe das tentações malignas, vieram a ser diabólicos os humanos que com ele pactuam. Estes também nascem da terra, porém, corporificando o estigma do mal, formam o batalhão de indivíduos inescrupulosos, usurpadores, venais e charlatães.

Gastaria sete palmos desta crônica sombria a enunciar nomes que o identificam. Contudo, é mal-agouro pronunciá-lo. Assim, o coisa-ruim e os humanos pactuados, os aludimos como o cujo, o mofino, o sujo e arrenegado, o futrico, o caneco e o canheta excomungado, o cão, o temba, o catingudo e tisnado, o labrego, porco-sujo, belzebu e condenado, o sarnento, o coisa-à-toa, o mofento e desgraçado. E, tido como a extremidade inferior dos bichos, atende por pé-cascudo, pé-de-cabra, de gancho, de pato de peia... Foi ele que, emergido das trevas, atentou o filho de Javé, a todos os profetas e aliados do bem, pra puxá-los ao reino das sarjetas, dos bueiros e abismos.

Entre os comuns mortais, são inumeráveis as encarnações reais ou imaginárias do dito-cujo. Talvez engendrado nos cafundós antigos da alma - a tragédia de Adão -, o personagem Dr. Fausto é um desses cabrões conhecidos há séculos. Em carne e osso, deve ter sido um astrólogo chamado Johanes Faustus, que teria vivido entre os séculos XV e XVI. Pactuado com o sobrenatural e desfrutando da fama de adivinho pela invocação dos espíritos, viveu entregue à enganação e prazeres da mesa, do dinheiro e do prestígio. Freqüentou anteriores livros, mas em Goethe o drama faustino se desenha numa das maiores inspirações da criação universal, comparada ao Quixote, Pietà e Monalisa. Revelando a zona obscura da consciência, sobrevive nos folhetos de feira, no lenho dos figureiros, nas letras de Tomas Mann, em todos os recantos e, entre tantos, em Eça, Machado e Pessoa. Simboliza a face torpe, a soberba e ambição insaciável de aniquilados viventes. É encarnação da duplicidade de conduta, do pervertido, daquele que, nos códices do passado, vendeu a alma a troco da fama, conhecimento e juventude. Nos tempos atuais, em que a acumulação de riqueza é templo dos soberbos, e se traduz na forma fria de escrituras e dinheiros, a tragédia de Dr. Fausto exprime o destino do condenado à noite sem remédios, à angústia insondável do mundano. Simboliza a indústria do insulto a insuflar o maligno sobre os campos e cidades; exprime o que se veste do poder do capital e decreta embargos criminosos, obscenas transações, instiga a lei do mais forte entre os mortais, a discriminação e o medo. Alicerçado nos baixos instintos, Fausto convalida a sina do pobre-diabo esvaído do entendimento, que corrompe a vida, tingindo-a com o negror vil da traição e da mentira.

Eis o maligno, imaginário ou transitando entre nós, excelso ventre da maldição, a encharcar tapetes de cortes, palácios, câmaras, cartórios, bordéis e repartições públicas. Eis os ignotos ladrões, rapinóias declarados, chantagistas zurros, faustos cumpliciados, convictos e impunes, a vagar despreocupados pelas frestas da existência! Ah, quantos conglomerados, quantos bandos, quantos espertalhões acima da suspeita infestam pequenas e grandes sesmarias! Risonhos e apessoados, nomeados ou eleitos, travestidos em políticos, legisladores, escroques e doutores, fazem da alma satânica o portal de suas vidas. Anjos caídos e desconsolados, definham a cada ato da demônia comédia que protagonizam. Definham! - repito. Tudo em razão de uma sentença escrita nos tempos: para além dos demônios e dos pobres herdeiros de Fausto, um deus - o incenso d'alma - sobrepaira pelas sendas do mundo e, nesta terra do sol, comanda o assopro imensurável da justiça, força imortal da ética e da virtude, perene, redentora e singularmente bela. Chô, corruptos!

 
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.