OUTRA HISTÓRIA DE AMOR

Conta o contador de histórias que ela ficou incomodada com o carro ali azul, paralelo à sua vaga na garagem. Agora, nem podia escancarar a porta, na escassez de espaço. Teve ganas de investigar quem fosse o dono, aparecido assim, sem mais nem menos, o invasor, um ladrão à espreita, quem sabe? Subiu ao apartamento e constatou, vizinho, um facho de luz no vão da porta. De repente, alguma coisa se transformava dentro de si, vagando caçadora pela sala. Encostou-se à parede e ouviu nem chuveiro, nem talheres, nem passos ou respiração. Mas – adivinha o narrador –, sentia no íntimo o cheiro incômodo e sedutor de um estranho. Quem seria o ladrão, o supremo tarado, na altura daquela noite? Quis pôr a música, mas desistiu: o intruso, resoluto, permanecia na melodia indiscreta do silêncio. Voltou do banho enrolada na toalha, enxugando a pele clara do ombro, pressentindo-se vigiada. Sentia cansaço de si, na inconsolável suspeita. Do nada, veio-lhe a sensação de carícia, nos cabelos pretos, úmidos, a roçar-lhe o pescoço. E o contador de histórias parou nesse momento, pois as luzes se apagaram, primeiro as dela; após, um único ruído de interruptor, e calava-se, misterioso, o apartamento do vizinho.

Vamos chamá-la Mariana – convidou-me o narrador –, e saberemos porque. Ela desceu às 7, e da garagem já se fora o carro azul. Era alívio e inexplicável sensação de perda. Como alguém ousa fazer isso comigo? Foi assim naquela hora, e latejando em outros dias, no desconforto da profecia sem nexo de um bisavô do mato: “ainda era de vim uns cavalo de ferro, de todas cor, deslizando numa estrada toda preta”. Na quinta-feira, lá estava, num azul intenso e paralelo à vida sua, o nefasto intruso. Correu ao elevador, fechou-se no quarto. O teclado do computador era a única alma de gente, na moradia ao lado. Animou-se em pôr baixinho a música de um cantor cubano: “no proibido brilha astuta a tentação... / um senhor quer ser mulher / e uma menina quer ser senhor... / e Mariana quer ser canção...” Mas as teclas continuaram, monótonas, intermitentes. Ela morreu de ódio. Pensou em ligar pra alguém, remexer gavetas, ou ficar horas e horas debaixo da ducha. Quem sabe não teria outra vez a sensação de uma toalha, a acariciar-lhe o ventre?

No dia seguinte, repassou os olhos negros no interior do carro, disfarçando-se distraída, e não havia vestígios de mulher ou vítima suspeita. Seria bandido um solitário? Ah, mas sim, havia, súbito, inocente, o livro no banco de passageiro: “Leio-te, Livro-te”. Ela franziu a testa, nunca engolira semelhante afronta. “– Que audácia, livrar-me de quê?” Foi decidida ao apartamento, mas abrandou-se e frisou feliz, orgânica: “entre-se”, apontando para si a própria sala. E havia no ar, baixinho, a melodia sublime de um saxofone. Era o passaporte do vizinho, seu recado? Deu-lhe em réplica o mesmo artista cubano: “... eu sei que há gente que me ama, / eu sei que há gente que não me ama...” E voltou do apartamento vizinho uma canção irlandesa, dos felizes tempos de criança, ou de um inesquecível filme de amor. Ela se remexia, num estranho burburinho interior. Deu ao ladrão “As Time Goes By”, mas sentiu-se um tanto envergonhada. Na tréplica, respondeu-lhe com “Smoke Gets In Your Eyes”, de “Meu Querido Intruso”, e teve a mesma sensação de entrega fácil, deslumbrada. As músicas que lhe oferecia o vizinho eram sutis, de refinada sedução. Sentiu-se apurada, lida por dentro. Pôs, por inteiro, o disco de Charlie Parker, estonteante, e, desafiada, escondeu-se no banho, mole, diferenciada na alma. Acontecia-lhe o milagre, ou a mágica era abstração ilusória na comédia da vida?

Deu-se que na manhã seguinte – conta o contador de histórias (e foi isto que me deixou tão enlevado!) –, ela desceu em ponto às 7, na certeza do trêmulo encontro com o bandido, à meia-luz da garagem. Só o carro azul reluzia como novo, e nem sinal do motorista. Fez que esqueceu alguma coisa, e voltou ao apartamento. Em pouco, sentiu que agora sim, o vizinho deixou a casa. Era preciso encontrá-lo, exigir-lhe explicações, cobrar-lhe indenização por perdas e danos e inúteis dias de sonhos. Inventaria que sua música era incrivelmente fora de moda, e não a deixava dormir. Mas viu-se mesquinha. Apertou o botão que leva à garagem. Contava pra si que ele talvez já seguira seu caminho, impossível vê-lo. Mas não, eis o invasor, o inimigo a esperá-la. Ela o encarou com altivez, desafiadora, mas ouviu a voz vidente: “– Você já esteve na garagem há pouco, não foi?” – perguntou (e me deixou assim, tão invejoso). “– Como ousa meter-se em minha vida?” “– É que, quando desci, havia por aqui uma canção. Era seu perfume no elevador, Mariana”....

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Romildo Sant’Anna, escritor, livre-docente, é Curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’.