O CRIME DO PADRE AMARO
No ar, “O Crime do Padre Amaro”. A curiosidade nos leva ao cinema; professores recomendam aos alunos. Afinal foi indicado ao Óscar, e deve ser interessante adaptação de Eça de Queirós. Que nada! O filme dirigido por Carlos Carrera é descaradamente oportunista, panfletário. E, do romance, sobra este núcleo temático: a sedução de Amaro Vieira, recém-ordenado padre, por uma jovem de 17 anos, catequista intensamente erótica e provida de rosto angelical, Amélia. No demais, ao filme falta-lhe o charme, o domínio magistral da técnica narrativa, o lirismo impressionista carregado de melancolia e sutileza, o drama existencial dos personagens, a refinada crônica dos costumes e da hipocrisia social e religiosa em Portugal dos finais do século 19, tudo refletindo o ímpeto reformista presente no grande romance português.
O livro, publicado por primeira vez em 1875, consolidou o realismo estético, e a própria forma do romance moderno na literatura portuguesa; o filme é uma embolada de grosserias, cinismos e vulgaridades. Cria-se um cenário onde se projeta a ralé e a pobreza de espírito; sujeita-se ao atraso intelectual e religioso, em busca de fins específicos: de forma sensacionalista, hostilizar a igreja católica. Situado num vilarejo mexicano, sujo e ignorante, misturando mal-e-mal conflitos de narcotraficantes, bandidos miúdos, a guerrilha, a corrupção num pequeno jornal e seus enlaces com o poder político, e o envolvimento espúrio de uma diocese, o filme é uma ferida aberta e violenta. Desmoraliza-se no escárnio estético de si mesmo, na busca de efeitos medíocres e excitantes. Sem nenhuma inovação de linguagem, e na linha afetada e previsível das telenovelas mexicanas, agrega-se a um fato em evidência e dessacraliza os símbolos religiosos como um todo. Forcejando para que seja ambientado nos tempos atuais, mostra de maneira caricata a perseguição puritana da igreja aos padres vincados pela Teologia da Libertação, a violência numa forma pré-histórica de crime organizado e narcotráfico e, numa das seqüências, um bispo gordo e de feições aindiadas toma um banho insólito, confabulando ao telefone celular, e tendo-se ao fundo a fotografia do papa João Paulo II.
“O Crime do Padre Amaro” é, em si, a própria imagem do grotesco e um monumento aos filmes em estilo “mundo-cão”. Perde-se na ingenuidade das denúncias óbvias, das delações correlatas, das situações previsíveis. Nele, a ética social convertida em enredo de cinema se reduz à chantagem e à mentira, à exploração de doentes mentais, aos envolvimentos lascivos e festas de jagunços, ao fanatismo doentio, ao ambiente clandestino dos encontros proibidos e das “clínicas de aborto”, à banalização dos mitos sagrados e elementares da existência. Numa das cenas, uma beata furta uma hóstia pra dar de comer a seu gato; noutra, alguém surrupia esmolas, e os sinos são tocados com o auxílio de um gravador de fita cassete, imitando o som de um campanário. No auge, após atiçarem a libido no confessionário, Amélia e Amaro envolvem-se desnudos no manto de uma imagem de N. Senhora. E, bizantino tosco, o filme se esmaga em seu realismo depauperado.
Até aqui, nada demais, tendo-se em vista o grosso da própria cinematografia mexicana. ȁO Crime do Padre Amaro” causa polêmica e burburinho em alguns países. Conquistou visibilidade ao ser indicado ao Óscar de melhor filme estrangeiro. Os “críticos” de Hollywood, de olho mais nos negócios que na arte, deixaram de lado filmes importantes como “Cidade de Deus”, reconhecido como poético e esteticamente inovador. E, escolhendo o mexicano, querem dizer para o mundo que o cinema hispano-americano, e nós mesmos, somos assim: precários, grossos, deformados, panfletários... Agrega-nos outra vez à idéia de primitividade e subdesenvolvimento, onde nos forçam ficar. No glamour cafona do Óscar, relatam ao mundo que esse crime do Padre Amaro era o que de melhor havia em matéria de cinema, em nossos países. E, enquanto isto, protegem seu mercado de ações em forma de entretenimento, e empurram, para abaixo e acima do equador, seus próprios enlatados. Como sempre acontece na atmosfera enferma dos negócios, os norte-americanos fazem e fazem assim, assim tem sido, e assim mesmo acham que será. ...E la nave va!
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Romildo Sant’Anna, escritor, recebeu o prêmio “Casa de las Américas” Cuba. É curador do Museu de Arte Primitivista ‘José Antônio da Silva’ São José do Rio Preto SP - Brasil.