Um carro antigo, matéria de aço e lataria da boa, pode lá ser genioso e ter caprichos. Pudera, foi retirado novinho da agência, mimado nos primeiros anos com paninho de flanela. Sempre o mesmo dono. Humilde e consciente, dispensou a hipocrisia interesseira do homem da seguradora, que sempre queria avaliá-lo acima da tabela. Fez meu amigo acreditar que era bobagem gastar grana com revisões periódicas, as quais sempre tomou (não sei se por pudor ou econômico) como invasão de sua privacidade. Hoje aceita (quase) tudo do meu amigo, no vrum-vrum-vrum da paciência, digamos, recíproca: beira de corgo, navalhadas de terceiros distraídos, raspões doídos, tocos de cigarro no chão e até gozadores que lhe imprimem na pele desbotada: “lavem-me, por favor”. Como a lendária personagem da canção popular, um carro de verdade é pra transportar seu dono e não para ser carregado, justifica-se, digno e brioso. Há poucos anos, recebeu com naturalidade e paciência o apelido de abobrão (não por molenga e achatado, mas por alaranjado), tratamento que procurou ver mais como sinal de afeto que deslavada zombaria. Ouviu denúncias, intrigas arrepiantes, mentiras e confidências sigilosas. Suportou agruras financeiras que acabaram influindo em sua aparência pessoal. Leal a seu dono, deu caronas indesejáveis em horas que pretendia estar a sós. Maduro, o carrão do meu amigo está acima do fútil.
Há um mês e pouco, o amigo se separou da mulher. Sem nem passar pela cabeça que ele sobrevivia até a um casamento, o carro transportou o casal silente ao Fórum. Mesmo sentindo certa depressão, foi muito discreto e respeitoso, não querendo meter a colher. Continua levando as crianças à escola, agora com particular cuidado, porque elas (não sei por quê!) deram de ficar também caladas.
Quem muda de vida de uma hora para outra se torna um pouco relapso, talvez fingindo de que nada aconteceu. Quem está em volta percebe. Que dirá o carro do meu amigo, íntimo dele até nos ventos.
A gente, sem querer, acaba falando coisas que não deveria. Inconseqüente, meu amigo disse que ia levar o carro para ser examinado num Mecânico Geriátrico, vê se pode? Palavras ao vento, como se dizia antigamente. Em verdade, era coisa de nada, problemas de vela e plantinado vencidos. Pra quê?! Com os brios ofendidos, fulo da vida e ranzinza, já era de esperar que o carro desse e desse mão-de-obra ao Nestor. Vazou por tudo quanto é junta, não quis pegar, tossiu e saiu marchando aos pulinhos. Como garoto birrento. Por fim, entregue de volta ao incauto dono, com a promessa de interná-lo outra vez na segunda-feira, o carro deixou a oficina acendendo a luz de falta de óleo, o ponteirinho da temperatura subiu avisando que alguma coisa ia explodir.
Sei lá, parece que com a separação do meu amigo, o carro ficou mais sensível, pressentindo que logo viria a sua vez. Por isto, Mário, te peço encarecidamente. Seja discreto perto do abobrão. Diz só coisas positivas quando estiver junto dele. Fala que é o maior, o mais macio, veloz e gostoso dos automóveis. Mente que ele é o anjo que meu amigo deixou nalgum escrito, o canarinho... o pró-diretas... o bem-te-vi cujo canto alegra as manhãs.
Por favor, se possível, não comenta nada do que está acontecendo hoje em dia ao nosso amigo. Cê sabe, a história dele..., olha, nem em bolero. Nosso amigo, que agora anda muito sensível, e é um cara legal, não merece ficar a pé, nem nestes dias que parecem becos que não acabam, nem nunca.