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Millôr Fernandes |
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Humildemente
ouso referi-lo, talvez pelas costas, já que se foi. A
incansável
e aguçada inteligência
criativa
superam em
muito
a maioria dos
literatos,
jornalistas e
pensadores
que têm merecido
atenção
da crítica. “Liberdade
Liberdade” (1965,
com
Flávio Rangel) foi um marco de clarividência sociopolítica e engajamento artístico; suas
peças originais
e inúmeras traduções de clássicos e contemporâneos
são incomparáveis
contribuições à dramaturgia nacional; a produção gráfico-visual, prosa
literária e
poemas
breves em
livros, jornais e revistas
revelam uma das mais
instigantes
e provocativas personalidades
brasileiras do decênio de 1940
até hoje.
Popular, anedótico e
universal, Millôr era fora
de série.
Confessava com amarga sinceridade:
“não é
que
com a idade
você aprenda muitas coisas;
mas você
aprende a ocultar
melhor
o que ignora”.
Até
1962, assinava “Vão
Gogo”,
em analogia
ao grande pintor
pós-impressionista. Depois assumiu “Millôr”, com
“l” duplo e chapeuzinho no “ô”, aceitando as armadilha da caligrafia esgarranchada. Foi registrado como “Milton”. Na escola,
o “t” virou “l”, o corte mal posicionado da letra virou circunflexo e o “n”,
“r”. Deu Millôr. |
Escrevia por aforismos, o mesmo
artifício utilizado
por
Hipócrates para
ensinar medicina. Expressava-se em breves,
pensativas e agudas sentenças.
Numa “lembrança genética”
ao curandeiro
grego, proclamava com
malandrice
que a “anatomia é uma
coisa
que os homens
também têm, mas
que, nas mulheres,
fica muito
melhor”. Seu método implicava o virtuosismo
da arte de escrever,
proficiência
para os jogos
de sentidos e ruptura com
o psicologicamente esperado. |
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Millôr mexia com
o estabelecido e captava o leitor
no contrapé dos conceitos. Nessa
linha, observou com
desconcertante
lógica que
“de todas as taras
sexuais,
não existe nenhuma
mais
estranha que
a abstinência”.
Irônico, recomendou: “jamais
diga uma mentira que não possa provar”. Lírico, fitava o humano
com olhos
fatalistas: “viver é
desenhar
sem borracha”.
Perspicaz, jogava em
nossa
cara que “não ter vaidades é a maior
de todas”. E exclamava pessimista:
“como são admiráveis as pessoas
que não
conhecemos bem!”. |
Outra
joia de seu engenho criador foram os
haicais e parábolas rimadas. Indagava: “Há
colcha
mais dura
que a lousa
da sepultura?”. E observava
tragicômico: “Aniversário é uma festa
pra te
lembrar do que
resta”.
Millôr foi
recusa ao “espírito
de rebanho”, o anticlichê flagrado no pulo do gato, o
xeque-mate aos
padrões
usuais. Era um gênio antidogmático
e que se anunciava como
“um
escritor
sem estilo”.
Sem estilo e paradoxalmente único. Não cabe nos escaninhos
comuns dos grandes realizadores.
Ano após ano,
corporificou o maravilhoso atrevimento da criação, sensibilidade e intelecto.
Antecipando-se à morte que agora se deu, assim se despediu: “É meu conforto: da vida só me tiram morto”.
(Millôr Fernandes, 1923-2012). |
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
blog:
http://romildo-sant.blogspot.com/ |
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