Há muitas mortes
e todas se assemelham a algum
tipo
de exaustão.
Mas
falo agora é da
tal, a absoluta.
Fernando Pessoa a invocou numa
ode: “Vem, noite, antiquíssima e idêntica,
noite rainha
nascida destronada, noite
igual por
dentro ao
silêncio...”. Sugere que,
além
de Deus,
nada
existe tão
igual
a si
mesmo
que essa imperatriz soturna, esse acalanto
que acalma os burburinhos da vida. Pois nascer é passar a vida morrendo.
Representada pela negra foice
que
extingue, a intermitente
morte,
esse “labirinto
sem portas”
como a desnudou Saramago, é o derradeiro
mergulho no desconhecido.
Quando
menino, eu tinha uma
visão
doméstica da morte.
Seu arrepiante medo circundava a nossa casa. E nosso pai partilhava conosco
um assombro
de Álvares de Azevedo: “Se eu
morresse amanhã, viria ao menos
fechar meus olhos minha triste irmã; minha
mãe de saudades
morreria se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em
meu futuro!
Que aurora
de porvir e
que
manhã, eu
perdera chorando essas coroas se eu morresse amanhã!”.
Hoje, ao avistar o ocaso, penso no amanhã
sem mim.
Quem sentirá
minha
falta? Aterroriza-me
pensar no que
será quando jamais serei.
Epicuro, pensador grego, examinou o
óbito. Como em consolo, fala que ela não nos diz
respeito. Reside em
outra
esfera, pois
“quando somos,
ela
não é, e quando
a morte é, já
não somos mais”.
Outros a pensam
como
transformação renovadora, a seiva da nova
existência. A
cena
inicial do Hamlet é a
noção quase cômica da
reencarnação: “Alexandre morreu, foi sepultado. Voltou ao
pó. O pó é a
terra
e com a terra
se faz a argila.
Por
que a argila
em que
ele se transformou
não
poderia vir a
ser a tampa dum barril de cerveja?”.
A morte,
esse
vale misterioso nas grotas dos abismos, é a
desgrenhada
instância de
nossa
finitude; somos personagens em cena, num ato efêmero entre
os infinitos
atos
dum drama chamado
Existir. Contrasta-nos com
o divino, a persistência absoluta. Porém, numa
interpretação
corpórea do existirmos, o pessimista Schopenhauer escreveu: “tu [o ser]
és o produto de um ato que não deveria ter sido; assim, tens de morrer para anulá-lo”.
A morte é o Dia de Finados que não cessa.
Ironicamente, é silenciosa
adjuvante da delícia de viver. Enlaça-nos
em seu
beco
sem saída.
Nas Intermitências da
Morte, de Saramago, e fazendo-nos perceber o que
seríamos sem
ela, a morte
mesma
nos manda
seu recado: “a
partir
de agora
toda
a gente passará a
ser
prevenida por
igual
e terá o prazo de uma semana para
pôr
em dia
o que
ainda
lhe resta
na vida”. Rimos e tentamos
ser
felizes. E gozamos,
mesmo
que fingidamente, a
ventura
de viver.
Dizem que
indagaram a Molière, carcomido pelo fim da vida, se
lhe
era difícil
morrer. Até
que não,
respondeu o autor parisiense. Difícil
é escrever uma comédia.
Comédia
divina encenada sobre a areia movediça. Sombra contumaz e engolidora de
tudo, acariciante e invencível. Tou falano nela, a tal. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
blog:
http://romildo-sant.blogspot.com/ |