Nossa mãe e suas histórias. No
cuidado
de manter aceso
o lenho do
fogão, alentava-nos dalgum
mistério
da vida.
Assim, se seguiram diário em nossa casa contos
como
as de santa Maria Goretti. Órfã
de pai, cuidava dos irmãos
menores. Certa
vez, estando a
mãe
em lida
na roça, se
lhe
acercou um
vil
grosseiro em palavras e obsceno em desejos. Ante a recusa da menina, traspassa-lhe o peito com o punhal. Em sangue,
balbucia o perdão ao malfeitor.
Encolhíamo-nos em gesto de horror. Certo dia,
com a história
latejante na cabeça, quis ver a
santa em figura. Era pior do que nossa mãe nos narrava. Jazia
sob
um altar,
em
manta de cetim,
num caixãozinho de vidro. Era certo que, tendo sobrevivido por
milagre, fora
enterrada viva. Guardei em secreto o mais sufocante
dos meus
medos. E, toda
vez, pedia à mãe
que nos contasse outra história: a graciosa
Madalena.
Sou camarada vivido, mesclado em palavras. Entrevejo nossa mãe em
meio à fumaça, buscando os fios que nos enredavam em
histórias. Madalena, a pecadora.
Perguntei de seu
pecado.
Desconcertada, explicou-me com
um
enigma: luxúria.
Fiz sinal de
entendimento. Em casa
o que
nunca houvera foi
luxo
(que nem
na casa da Goretti). E mesmo que
fôramos “luxosos”, haveria sempre
a provocação do Messias: atira a primeira pedra! Essa era minha cena
predileta: o desafio
à tomada de
consciência
e a deposição de todas as armas. Amortecidas as fúrias,
Madalena se alevanta alumbrada, plena,
e
beija um
homem por
primeira
vez.
Pecadora? Não. Imagem difusa em
nosso espelho. Eia,
Musa
dos quatro
evangelhos, dos quatro
cantos
do planeta, nos
quatro
elementos da
natureza. Madalena dos quatro
mares, donzela dos quatro costados, das
quatro fases da lua, dos quatro pontos
cardeais. Sombra do
pecado
em toda
gente, pendurado nas quatro hastes da cruz.
Certo dia,
vindo a saber que
Jesus visitava um
fariseu,
eis que
adentra na sala a dama da cidade.
Quebrando as normas da casa, lentamente
se aproxima. Traz num frasco o
mais fino dos perfumes.
Em
silêncio, banha
os pés do
convidado
e, afagando-os no rosto, enxuga-os com os
cabelos. Após, na surpresa
em que viera, afasta-se delicadamente.
Pecadora? A mulher
subiu em aflição a pirambeira do calvário
e ajoelhou-se ante a tragédia. Eia, ali, noiva
morena dos
injustiçados,
enfermeira dos
impuros, guardadora dos sepulcros e das ressurreições.
Enlutada, aportou nalgum lugar, cheia de
graça, alumiada por dentro. Os feitiços
da existência engendraram seus encantos de
contos
por contar, de
um fogão
em lume
a aquecer os corações. Para que
houvesse a sagração dum destino:
ser
um contador de histórias, e partilhá-las consigo, dileto leitor. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
blog:
http://romildo-sant.blogspot.com/ |