Não
vem dizer que estou velho, pois me basta o suplício da palavra sem o
acréscimo dos maus propósitos. Falar que vivo na melhor idade é um
atentado à natureza e interpreto isso como injúria. Há tempos, os
arranhões na pele eram tratados com a mezinha universal: o mercurocromo.
Aos machucados zangados, o mertiolate. Os talhos com purulentos
borbulhavam com água oxigenada ou eram queimados com iodo. Havia uma
gradação de ardumes, conforme nossas feridas. E nos víamos firmes,
voltando à lida da infância e seus riscos imanentes. Todo mundo
receitava tais líquidos curativos, dos boticários e médicos de fino
trato aos curandeiros baratos.
No quinto mundismo dos tropeços nacionais, e
sedimentados por fazedores de leis, houve um tempo em que, obviamente,
em mancomunação com a indústria farmacêutica e de nécessaires, os
motoristas eram obrigados a portar um milagroso kit contendo um frasco
de mercurocromo, outro de mertiolate, um rolinho de gaze e alguns
band-ais para o affaire altruísta dos primeiros socorros e a ação
heroica de se salvar uma vida. Tudo tão ridículo que até os guardas
rodoviários se sentiam constrangidos em multar os transgressores. E a
lei foi pras cucuias.
Quem se mete a construir uma casa vai ver o que é bom
pra tosse. Os peões não continuariam na mesma (a opção urbana pra quem
veio da enxada) se, agora, não estivessem aferrados em telefones
celulares, nos vectras, golfs, picassos e motos de terceira mão,
adquiridos a preço de banana. Só acordam do sonho na hora da troca de
peças ou quando recebem a fatura da telefonia. Como nunca antes no país,
a classe operária foi ao paraíso, segundo o presidente mais cotado e
barnabés em cargos de confiança.
Os donos do poder, ademais seus estatutos néscios e
invencioneiros, tiveram abolido pelo senso popular o kit com
mercurocromo, mertiolate, água oxigenada, iodo e o mixo rolinho de gaze.
Em troca, nos tucharam as tomadas com três furos redondos, quase
retilíneos na vertical e desenhando um buraco com design sextavado. Não
conheço aparelho eletrônico ou eletrodoméstico que venha de fábrica com
os plugues três de pinos verticalizados e que se encaixam nas novas
tomadas. O que trazemos do exterior rejeita nossos buracos elétricos.
Nem os da zona franca Manaus, salvo desonrosas exceções, veem com os
três pinos para as tomadas com os incríveis orifícios. Onde vamos parar?
– perguntamos desacorçoados os da pior idade.
Muitos bradam por reformas jurídicas e tributárias.
Certo, mas, sistematicamente, barradas por doutores da lei e os
sumidouros das repartições. A sociedade conclama por reformas na
política. Nada mais obsequioso e nos plugariam em circuitos menos
medíocres e mais civilizados. Reivindicamos por melhores escolas, o
futuro da pátria. Mas os salvadores do país nos impingem as tomadas com
seus furos triplos e redondos. Decerto, fellinianamente, singrando nos
mares da incúria. E la nave va. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |