É a presidenta ou a presidente Dilma? Porém há casos em que a
truculência masculina extrapola seus limites.
Com
todo respeito
aos varões fardados e que têm por lema a
preservação da ordem e segurança pública,
as soldadas
são
demais! Heresia!
– esbravejarão
em censura os
puritanos
das normas linguísticas. Não há flexão
de gênero para
“soldado”, tampouco se diz “corajosa soldado”,
mas é soldado mesmo, inflexível! No caso
das mulheres fardadas, não se
considera a pessoa,
mas
o cargo ou profissão!
Se dizemos o médico,
a médica, o garçom, a garçonete, por que não a soldada? Mesmo os nomes comuns
de dois gêneros
distinguem o feminino pela
presença do artigo ou outro determinante.
São
“aquela jornalista”, “a estudante”, “as
sofridas boias-frias”. Porém às soldadas,
por
que o preconceito? No início do
mês
recebem o minguado soldo e, como todos os soldados de quaisquer patentes,
são
soldadas. Que segregação é essa – repito
– à intrépida e valorosa
militar?
Ensina
Carl Jung: na feminilidade, a alma
do mundo. Nela residem nosso
potencial
afetivo, a
espiritualidade, as intuições
proféticas, o sonho quimérico
de amor e
proteção. Quiçá pela
natureza
e atributos
femininos, é raro
à diligente
servidora pública o
gesto
tosco da truculência
e abusos de
poder. Trabalham de modo
compassivo, inspiram confiança,
dão delicado
toque de refinamento ao batalhão. Sem que se
imponham ostensivamente, têm o
poderio atávico da mulher, trazem
implícito
o respeito de
si
e da sociedade.
As gramáticas se omitem, fingem que não é comigo. Os
dicionários
que, no aquartelado dos conceitos,
enfeixam o espírito cultural da nação,
registram “soldado”
só
no masculino. Referem ao viril e destemido
guerreiro de antanho que recebia soldo. Ignoram as soldadas
do presente. São
porta-vozes de nossa macheza e decerto
também por isso os chamamos “pais
dos burros”. Fica-nos o dever ético de tê-las como pessoas
sexuadas,
mães e companheiras, tratando-as no feminino: a digníssima soldada.
No Chile, a ex-presidente Michelle Bachelet,
batalhando a reconciliação da nação, confiou a chefia de segurança do
palácio La Moneda a uma “carabinera”, quer dizer, a uma soldada.
Nada mais
simbólico e civilizador! Aliás,
no país de Gabriela Mistral e Neruda, a Guarda Nacional integra-se no meio
a meio:
soldadas
e soldados. Por
que no Brasil não
nos
reconciliamos com a
razão
e a sensibilidade?
Gina Lollobrigida observou: “Glamour
é quando
um
homem percebe que
uma mulher é uma
mulher”. No entanto,
deixando que gritem o empedernido machismo
e o espírito patriarcal que
historicamente nos
governa, lemos o absurdo em sua farda “Soldado Feminino PM Beatriz”. Dia desses, toquei no assunto com
uma solícita soldada. Ela franziu
a testa com
ternura e respondeu com outra pergunta, entre o respeito
à disciplina
militar
e sua convicção de cidadã: “Estranho, né?”. E, enigmática
como
a Mona Lisa, discretamente,
sorriu. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |