Comovente
o filme “A Marcha dos Pinguins”
de Luc Jacquet. Até ganhou o Oscar. Narra a saga
dos Pinguins-imperadores
que vivem e procriam em colônias, nos cafundós glaciais do hemisfério Sul. Caminham
eretos, mas aturdidos e desengonçados, e parece que se nos apresentam em
trajes de gala.
Velozes
na água e insaciáveis, enchem a pança com seres
marinhos; enquanto a fêmea vai à caça, o
macho incuba os ovos e os protegem sobre os pés. Na
trilha sonora, vozes de atores insinuam os sentimentos dos bichinhos e lhes atribuem humanitárias virtudes. “Ai, meu filhinho morreu!” – lamenta
a mamãe-pinguim. Predadora voraz, nem se lembra das grávidas moluscas e
pais-peixes que há
pouco
devorou.
Ano passado, numa praia da Ilha Grande, Angra dos
Reis, presenciei um movimento de pânico e gritos de socorro. Alguém se
afogou? Não. Alguns desses patos-da-neve, como de ordinário acontece,
se acharam por aqui. Não eram Imperadores, como os do documentário, nem
Pinguins-duendes de baixa estatura e rude estirpe. Debatiam-se entre o
calor dos seixos e o fervoroso cuidado de seus salvadores. Entre ondas e
glamorosas lanchas, ambientalistas e misericordiosos em geral os
amparavam com denodo singular. Em conversa com caiçaras do local, soube
depois que alguma repartição do governo os acolheria em ambientes
aclimatizados. E, em caixas especiais, os despacharia de volta em voo
vip à Antártida.
Leio agora nos jornais que, em Gramado, o rigoroso
inverno da Serra Gaúcha levou o zoológico a adquirir aparelhos de ar
condicionado para aquecer sete pinguins da espécie Magalhães, que vivem
na Patagônia, extremo Sul da Argentina. No ornamental “pinguinário” com
isolamento térmico, tratadores com mestrado, veterinários plantonistas e
dieta reforçada, as aves se refestelam a temperatura de 15ºC,
compatíveis com o habitat de origem. Enquanto isso, do lado de fora, sem
fraques nem paletós, sem eira nem beira e compaixão, muitos seres
humanos tremem ao desabrigo e às vezes morrem de frio.
O que explica tamanha hipocrisia e essa ânsia de
evasão da realidade? Que ultraje moral, que iniquidade, que desapreço a
nossos semelhantes! Que religião nos interliga? Como o Pai pode ser
nosso se o pão nosso ofertamos a pinguins? No filme da vida, quantos infelizes
padecem em
boléias
mendigas e jardineiras clandestinas pra
fugir da fome?
Quantos esquálidos e penitentes choram de
angústia por filhos largados lá longe? Por
que também não os transportamos e os tratamos com a dignidade universal
dos humanos direitos? A esses, as campanhas sazonais com pedidos de que
se os esmolem com roupas boas e usáveis, e não com os despojos de nossos
farrapos.
Que infâmia da comédia humana, que tragédia! É cômodo,
incrivelmente fácil, remediar a
dor
da consciência sonhando com aves
longínquas, de arribação, ou com sucedâneos que pacifiquem o espírito,
quitem nossas dívidas nos prontuários da ética e nos deixem de bem com
nossos fantasmas. Com respeito à nossa vida e ao que nos cerca, raios
partam esses pinguins!
Romildo Sant’Anna,
livre-docente, membro da
Academia Rio-pretense de
Letras e Cultura |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |