Por mais que se esforce, é
pouco pra transmitir as agruras por que passaram os imigrantes italianos
até meados do século 20. Empurrados à direita de quem desce o rio Tietê,
eram uma legião acesa em quimeras. Em doze anos, da Lei Áurea a 1900,
chegaram ao porto de Santos mais de 400 mil. Vieram com o sonho de fazer
a América. Porém, além da finalidade de esbranquiçarem o populacho
amorenado, substituíram o braço escravo nas fazendas. Os que se
enraizaram nas cidades, em posições servis, eram tratados como carcamanos
devido à má fama de “calcarem a mão” alterando as balanças nos empórios.
Vindos de aldeias
proletárias e agrícolas, suaram pra arrancar do chão o mantimento. Na
guerra, a discriminação os obrigava a mendigar salvo-conduto para irem
dum lugar a outro; na paz, abraçaram-se aos caboclos e se acaipiraram.
Um amigo narrou-me que os documentos de seu bisavô o identificavam como
escritor. Custou entender que, no navio em que viera, era o único que
sabia ler e escrever.
Reconto a história que me
contou Percival Tirapeli, notável estudioso da arte brasileira.
Convivemos muito tempo por leituras recíprocas sem nunca nos vermos
pessoalmente. No encontro, gestos de afetuosidade só possíveis neste
Brasil cerzido com os retalhos das ausências. Relato-a acrescentando um
ponto pra realçar um pormenor de ternura na saga desses imigrantes.
O nono Luigi – disse-me
Percival – está sepultado com o primo Ambrósio num lugarejo conhecido
pelas águas claras. Em língua indígena, Guapiaçu. Tinha estudos, era
bonito, lia livros e alfabetizava as crianças da colônia. Prosperou com
uma pequena gleba autorizada a comprar após anos no país. Quando a nona
morreu, muito jovem, como não havia cemitério na vila, foi sepultada em
Cedral. É por isso que minha mãe nunca teve quem lhe penteasse os
cabelos, contou comovido.
Na década de 40, o avô
voltou à Itália pra se tratar de nó nas tripas. Reencontrou-se com os
parentes e lhes trouxe o couro duma enorme sucuri. De tão bizarra, a
pele curtida virou senha familiar. “Que terra é essa onde se arranca
toco misturado com bicho e não se tem onde enterrar a nona?”. Não houve
resposta. Acrescentou más notícias: como a sobrinha Santina demorava a
parir, o marido espanhol deu-lhe um soco na barriga pra descer a
criança. Mãe e criança morreram.
Dia desses, Percival foi à
Itália pra regularizar a dupla cidadania. Fácil chegar a Oderzo,
encostado em Treviso. Com muitos graus negativos, mal distinguia, entre
as indicações baralhadas na cabeça, a paisagem diluída em névoas. A casa
ficava num aluvião, defronte da estação cujos trilhos levam à Áustria.
Bateu e uma lenta senhora chegou à porta. Repassou-lhe a vida do nono
Luigi, mas ela quis saber da senha: “O que ele trouxe quando veio
aqui?”. “A pele da serpente!”, respondeu. A velha o abraçou
enternecida. E dispersando das vistas as águas do tempo, o convidou:
“Entra, filho, a minestra tá na mesa!”. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |