Padrinhos são amigos do peito escolhidos pela família nos sacramentos do
batismo e do crisma. À parte os desnaturados, solidarizam-se com seus
afilhados e assumem o compromisso de provê-los, material e
espiritualmente, na falta dos pais. Em ampliação dos sentidos e sempre
na órbita do bem, há padrinhos de casamento, de formatura e até de
inaugurações, sendo esses também designados como paraninfos e patronos.
Nos enlevos da vida, os padrinhos são fundamentais nos ritos de
iniciação e simbolizam a incessante procura da felicidade.
Mas como o diabo sempre mete o dedo em tudo que bom e,
manipulando a química das injúrias, fez surgir das trevas o
apadrinhador. Com esse, a falange dos apadrinhados. Personagens desse
enredo são frequentes. E comparecem em fases de degradação social, com
resultados mesquinhos. Assim sucedeu quando o incestuoso e desvairado
Calígula escolheu como apadrinhado seu cavalo Incitatus. Além de
nomeá-lo senador romano, deu-lhe um palácio de presente.
Uns apadrinhadores são indissimuláveis e o aparelhamento
do Estado se incha de barganhas espúrias e privilégios privados. Outros
encenam ligeiro constrangimento e justificam seus apadrinhados
(funcionais, vagabundos e “consigliere”) como fatores de
governabilidade. Às vezes, num triz de lucidez, pressentem que seus
pupilos encarnam corrosiva gosma na máquina estatal, são chupins
instititucionais do erário e desbragados lúmpens do desgoverno.
Apadrinhador e apadrinhados, de todos os modos, usufruem o patrimônio
público como Cosa Nostra.
Diferentemente do padrinho benfazejo, o termo
“padrinho”, no sentido de “apadrinhador”, aparece precedido do artigo
“o” que o faz diferir dos outros padrinhos. Designa a forma medonha e
detestável de “il padrino” ou “the godfather”: o chefe da máfia. Nessa
organização tudo é “coisa nossa” (contanto que fique ao chefão a maior
fatia). Assim, apadrinhador e apadrinhados instituem o sistema mafioso
como tantos que se armam, rosnam, vilipendiam e saqueiam as
conchinchinas do planeta.
O termo “máfia”, na dialética do apadrinhador e
apadrinhados, deriva do adjetivo siciliano “mafiusu”, por sua vez
herdado do árabe “marfud” (em tradução livre, o mandão temido,
arrogante). A encenação recente mais incisiva dessas “famiglie”, seus
asceclas e métodos surge em “The Godfather” (1969), de Mario Puzo,
romance que originou a esplêndida trilogia “O Poderoso Chefão”, de
Francis Ford Coppola.
No livro e no filme, alegorizam-se os germes do crime
organizado e o chão sombrio donde brotam mandantes e capangas,
apadrinhador e apadrinhados. Eles se alastram como epidemias em nações,
cidades e vilas em que o medo e a parca educação apagam nos seres o
senso de cidadania. A força da justiça se definha e murcha com ela a
virtude da ética. O contexto social degradante abre cancha às nomeações
de Incitatus equíneos e à corrupção endêmica, na incitação da política
rasa, enquistada de desmandos. Avulta-se, como na tela de cinema, o
império dos atrevimentos, vilania e desvergonha.
Romildo Sant’Anna,
livre-docente, membro da
Academia Rio-pretense de
Letras e Cultura
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Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |