Entre os gregos antigos, os atributos do galo
semelham aos do deus Apolo, o herói do dia que nasce. Entre os chineses,
seu canto prenuncia novos tempos e o regalo da esperança. É a ave da
alvorada vermelha, passagem das trevas às deslumbrâncias do sol. Rezam
as crenças que o galo foi o primeiro bicho a pressentir o nascimento de
Jesus, e o anunciou com seu canto à meia noite. Daí, nos ritos do
catolicismo, a simbologia da Missa do Galo. Amalgamado à existência do
Messias, do nascimento à hora da morte, sentenciou o rabino a Pedro, o
melhor entre seus amigos: “antes que o galo cante duas vezes, três vezes
me negarás!”. E assim se consumou a profecia duma noite que trazia
consigo a luz da salvação.
Sua imagem plasma-se ao cotidiano. Um galo cantando
fora de hora anuncia moça que foge; “galo de rinha” é um sujeito
briguento; quem “canta de galo” tem panca de valentão; “cozinhar o galo”
é fingir que trabalha. Seu grito triste é mau agouro, ouvir seu canto e
não saber donde veio é estar por fora do assunto. “Salgar o galo” é
tomar a primeira pinga e ter um galo na cabeça é inchação por pancada.
Há pouco, o “Galinho de Quintino” ciscava na área, arguto em frente do
gol.
Em “O Coronel e o Lobisomem”, romance de José Cândido
de Carvalho, “vermelinho” era um galo-índio afeiçoado a seu dono.
Seguia-o docemente pela fazenda, mas tinha lá suas birras. Posto em
combate contra um malvado do bico de foice e esporas afiadas, deu-lhe
uma sonora surra. Isto impediu o coronel de casar-se com uma solteirona
esnobe, filha do dono do galo inimigo. Foi ciúme ou proteção? Em
“Ninguém Escreve ao Coronel”, obra-prima de García Márquez sobre os
dilemas latino-americanos, um ancião e sua mulher dividem a rala comida
com o galo de briga do filho Augustín. Substituindo o filho que se foi,
encarna o afã duma reviravolta na existência, a arma protetora que
arrancaria os pobres da miséria.
Pela altivez e coragem, o porte esguio e brioso, a
crista em fogo e calda com insinuante e delicada curva furta-cor, como
que a lembrar uns belos traços de Niemeyer, o galo é um ente universal e
mítico. Embeleza antigas iluminuras e, no cimo das catedrais, anuncia o
dia afugentando a noite. É o condão salvador, natividade e confiança. É
o “chantecler” que alumia e simboliza o povo francês – o habitante da
Gália. Na revolução de 1789, era comum entre os pobres desenhar a imagem
dum galo sobre os canhões e debaixo a legenda: “Je chante pour la
liberté” (eu canto pela liberdade).
João Cabral, raro poeta, escreveu que o canto de um
galo lançado a outro faz com que se “cruzem os fios de sol de seus
gritos de galo, para que a manhã, desde uma teia tênue, se vá tecendo,
entre todos os galos.”. No elã do existir, confundimo-nos com ele e
pulsamos em seu ritmo. Seu brado cortante pelos vãos da noite causa um
mistério na alma, a saudade dum não-tempo ancestral e, por isto, a hora
de todas as ampulhetas e o rincão de todos os vivos. O galo, à imagem da
gente, é um transitório a costurar o sem-fim. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |