Existem dores não expostas;
futucam na alma. Tem gente que, talvez por mau berço, por inveja,
atrevimento, deformação de espírito e comportamento opressivo, vive a
atormentar os semelhantes. Espalham intimidações, comentários vis,
depreciam o que podem, inventam apelidos maldosos, criticam a aparência
física, o modo de vestir e a cor da pele. Se for um jovem com valores
morais inconsistentes, pode estar na linha direta da prática de ações
violentas no mundo que o rodeia, e mesmo de atitudes assombrosas quando
adulto. Um velho provérbio espanhol nos alerta para o destino do
praticante de bullying: “Cria corvos e te arrancarão os olhos”.
Se o ditado é antigo, a ação
circunscrita pelo ditado o precede. O bullying sempre existiu e atesta o
nosso lado torpe, o dragão da maldade que se aloja nos labirintos
sombrios dos humanos. Mas o termo em inglês “bullying” é relativamente
novo e sedutor. Como palavra da vez, entrou no vocabulário com o charme
dos estrangeirismos e tornou-se moda. Só se fala em bullying,
discutem-no em mesas-redondas e botecos, em ciclos de conferências,
ensaios, nos programas de tevê, jornais e teses universitárias. Essa
palavra exprime a nova onda das inventivas cosméticas, aproveitantes e
“politicamente corretas”.
Bullying deriva do inglês
“bully” e alude ao brutamonte temido, valentão. Em nosso idioma, há o
verbo “bulir” em cujo significado se inclui “causar incômodo, apoquentar
o outro”. Embora sem parentesco, aproxima-se no som e sentido com o
termo anglo-germânico. Em sinonímia, dispomo-nos do verbo “mangar”
(caçoar, expor ao ridículo por meio de ironias e atitudes maliciosas)
bastante conhecido nos descontraídos versos do baião “Kalu”, de Humberto
Teixeira: “com franqueza, só não tendo coração / fazê tá judiação / ocê
tá mangando de eu”. Mas é mais charmosa, digamos, a palavra “bullying”.
Os dicionários nem o
mencionam. Mas tanto se fala em bullying como fenômeno atual que o aluno
da escola, aceso em melindres, fica encucado se é ou não um molestado
por bullying. Ação e palavra são tão rotineiras e banalizadas que se
voltaram contra nós. Wellington de Oliveira, do massacre em Realengo
(além de desatinado mental era um frondoso ignorante) disse-se vítima de
bullying e conclamou “os irmão” atingidos por bullying a agirem como ele
e saírem matando virtuais inimigos.
Quando vamos sair das
atitudes hipócritas e ornamentais para chegarmos às raízes da questão? A
violência de todas as épocas são manifestações reativas aos atos de
violência? Trazemos na alma o sémen odiento de Caim? Hoje se dispara uma
arma contra alguém com o desimpedimento moral com que calçamos um
chileno. Com a palavra não os oportunistas que vagam na onda das
palavras, inclusive da fastidiosa “bullying”. Mas os indivíduos
discretos e proficientes em ciências das humanidades. Esses, sim, talvez
colaborem para que saiamos do beco em que nos encantoamos. E aterroriza.
Romildo Sant’Anna,
livre-docente, membro da
Academia Rio-pretense de
Letras e Cultura |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |