Sinto uma coisa por dentro
quando cruzo com a velha estação. No embaçado, vejo nossa mãe embarcando
em busca de recurso, fraca do coração. Nos meses seguintes, e quando a
saudade era tanta, recostava-me no pilar junto ao qual vivenciamos os
minutos em contagem regressiva. Inda ouço o apito doído do chefe de
tráfego sentenciando a partida. No enfim, a luz chocha do último vagão
sumindo na curva e um tuntatá vibrando no peito e triscando nos olhos.
Imaginava: noite alta, fariam baldeação para o trem elétrico e, dali em
frente, o cheiro amargoso de fio queimado a impregnar de escuro as
armações ovais da Estação da Luz.
Naqueles tempos, tantos
dormentes e trilhos de aço amolecidos de esperanças entrecruzavam
destinos: os da Paulista, a Sorocabana, a Mojiana e os da Santos-Jundiaí...
Da Noroeste partia o Trem da Morte a serpentear os charcos
mato-grossenses de encontro à Bolívia. Dali, o entroncamento para Machu
Picchu, a misteriosa cidade de pedra nas alturas peruanas. Almir Sater e
Renato Teixeira poetizaram o percurso: “Enquanto este velho trem
atravessa o Pantanal, só meu coração está batendo desigual. Ele agora
sabe que o medo viaja também sobre todos os trilhos da terra!”.
Por uma ou outra história de
vida, imagens de antigas gares se amalgamam em
nosso peito. Sinalizando a chegada do progresso, tais edifícios, com
suas marquises encobrindo as plataformas, galpões de mercadorias,
guichês e escritórios telegráficos constituíam fortunas comunitárias de
dimensões que superam a materialidade.
Ontem, a agitação polifônica de
cores, sonhos e vozes em vindas e arribações; hoje, o ermo enlutado do
vazio só interrompido pelo rumor dum comboio de cargas. No mais, o voo
incisivo e cego dum morcego, e o passo lento e oblíquo dum bicho sem
dono.
Fernando Brant e Milton
Nascimento, com singelo lirismo, registraram em música a correlação
entre as estações ferroviárias e nossa passagem pelo mundo. Desnudam
nosso ir e vir não só no espaço, mas nos solavancos do tempo: “E assim,
chegar e partir, são só dois lados da mesma viagem. O trem que chega é o
mesmo trem da partida. A hora do encontro é também despedida. A
plataforma desta estação é a vida desse meu lugar, é a vida desse meu
lugar, é a vida...”.
Por que a desestima a nossos bens tão preciosos? Há
150 anos, éramos brasileiros europeizados e europeus relutantes em se
abrasileirar. Mas faz tanto tempo! Cadê o autorrespeito? Ante o estado
de desolação desses edifícios, a omissão das autoridades que, de joelhos
nos ritos do agora, abandonam tais patrimônios em condições deploráveis,
quiçá a enunciar nas paredes encardidas dolentes perguntas: que
desvario, que toscos sentimentos, em que labirintos da inteligência, que
estranha libido incita os humanos a descarrilarem de suas próprias
sendas, largando ao léu as matulas do passado? Que descaminhos, que
desfavor ao porvir! Sinto
uma coisa por dentro ao ver a velha estação. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.
Membro
da Academia
Rio-pretense de Letras e Cultura |