ROMILDO SANT'ANNA

Nos teatros da vida

Hugo Chávez, tempos atrás, injuriado com a derrota em plebiscito que lhe aumentaria o poder, traduziu num resmungo o que lhe pareceu o triunfo da oposição: “Victoria de mierda!”. Inda quentes de hálito, suas palavras saltaram direto às manchetes, blogs e editoriais. Sublinhavam a atemporalidade histriônica, chula e rude do ditador venezuelano. Óbvio, o coronel-presidente não usou um vocábulo de bom-tom e, aos olhos atuais, talvez tenha descido mais um degrau na escadaria da civilidade. Porém, como de bobo não tem nada, valeu-se do termo rude, mas significativo no terceiro-mundismo e, por isso, até simpático à plebe festiva.

Não são incomuns certos signos se desligarem dos sentidos originais e assumirem valores periféricos. Ao desqualificar adversários, Chávez remoía por dentro a sensação de que o resultado eleitoral foi desprezível, uma porcaria. “Mierda”, derradeira exclamação dum ancião desolado em “Ninguém Escreve ao Coronel”, de García Márquez, era de fato o que disse, e muito mais como explosão íntima. Correlativamente, “mandar alguém à m.” não é imperativo de que o interlocutor vá mesmo em direção à coisa referida.

Nos anos de 1970, quando fazíamos teatro, m* figurava na lista das palavras malditas entre os censores, arautos da moral e bons costumes. Além de os textos serem vasculhados por olhos ávidos que os mutilavam, as encenações se submetiam às censuras prévias. Para isto, desembarcava não sei donde um tipo gordo em terno preto que dormia nas sessões só pra ele. Porém, como um robô, estatelava os olhos ao ouvir um m* ou um fdp. “Como não vetaram essa b* em Brasília!” – resmungava. Propúnhamos-lhe acordos: a barganha de três m* por um fdp imprescindível numa cena. Se concordasse, festejávamos a “victoria de mierda”, com a sensação de que o censor fizera-se o amigão das artes, no teatro da vida.

“Merdre!”, derivação prosódica de “merde” em francês, e dita como exclamação, é a primeira palavra da peça “Ubu Rei”, de Alfred Jarry, dramaturgo na virada ao século 20. Lacônica, sintetizava sua indignação contra as tiranias de seu tempo, metáfora da estupidez nos arcabouços do poder. O cidadão e autor sucumbiram pelo atrevimento da palavra, mas, há um século, seu texto sobrevive.

São tabus nos camarins teatrais os votos de “boa sorte”. Bate-se na madeira esconjurando o azar.  Para os bons augúrios, o elenco se abraça e grita em bom som muita m* para todos. Explica-se a superstição: Quando uma peça fazia sucesso, os sinais visíveis eram as muitas carruagens às portas dos teatros. E ali, os cavalos deixavam seus estrumes, a indicar casa lotada. Tudo encenação num mundo de signos. Signos ao léu, uns despropositais, muitos elegantes, alguns mesquinhos. Em paralelo, a comédia da vida real não esconde seus enredos, com a multidão de seres benfazejos e uns poucos sórdidos e mesquinhos. Esses últimos (realmente uma m*!), desilusórios das virtudes humanas, são os que fedem.

Romildo Sant’Anna, livre-docente, membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.