ROMILDO SANT'ANNA

Dom Quixote e os governantes

“Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes, é uma daquelas obras máximas do refinamento e criatividade. Semelhante à ideia de perfeição, parece escrito pelas mãos de Deus. Narra a história dum velho fidalgo que, de tanto ler romances de cavalaria, imagina-se, ele próprio, um cavaleiro andante. E, no frenesi dos delírios, sai em socorro dos aflitos e injustiçados. Seu escudeiro, o lavrador Sancho Pança, é seduzido pela ventura e aventuras de seu senhor.

Na segunda parte (publicada em 1615), Dom Quixote e Sancho são recebidos numa rica estalagem. Como os moradores do lugar já conheciam a fama de nosso herói, na primeira parte (1605), pregam-lhe todo tipo de troças e velhacarias.  No entanto, como não enxergava nas pessoas qualquer tipo de maldade, imagina que as afrontas recebidas o homenageavam.  Em dado momento, alguém promete a Sancho uma ilha para governar. Acreditando ser verdade, Dom Quixote exorta o companheiro sobre como ele deveria agir como governante (parte II, Capítulo XLII).

Foram várias recomendações, e mesmo ante a natural rudeza de Sancho, não perdeu tempo em alertá-lo sobre os que subornam, importunam e porfiam para estarem junto ao poder na busca de vantagens. “Os grandes cargos – ensina – não são senão um golfo profundo de confusões”. Tampouco o previne para afastar-se dos atos venais e fraudulentos, e do uso do bem coletivo em benefício próprio, de correligionários, amigos e parentes, pois isso, se é obrigação de qualquer pessoa honrada, mais será de alguém na função de governante.

Apresento meia dúzia de preceitos ditos por Dom Quixote a Sancho, em tradução livre do original. Como adornos da alma, eles alertam aos que exercem cargos públicos e aos que os elegem, à época em que a obra foi escrita e em todos os tempos. E, de bônus e simbolicamente, nos adverte como deveríamos governar a nós mesmos no largo da vida.

1. Nunca te guies pela lei do bel-prazer, que sói ter cabimento entre os ignorantes presumidos de agudos. 2. Achem em ti mais compaixão as lágrimas do pobre, porém não mais justiça que as informações do rico. 3. Procura descobrir a verdade por entre as promessas e dádivas dos poderosos, como por entre os soluços insistentes dos descamisados. 4. Quando tiveres que julgar alguém, não descarregues todo o rigor da lei sobre o delinquente, pois não é melhor a fama do juiz rigoroso que a do compassivo. 5. Se acaso fizeres alguma concessão às leis, que não seja com o peso da dádiva, mas com o da misericórdia. 6. Ao que castigares com obras não o trates mal com palavras, pois basta ao infeliz a pena do suplício, sem o acréscimo das más razões.

O personagem Dom Quixote, encarnação do sublime, confunde-se com Cervantes; ilusão e realidade se fundem. Um nasceu pra ser escrito; o outro para escrevê-lo. Talvez tenham sido loucos-gênios ou gênios-loucos. Não importa. Persistem visionários e comoventes, a abastecer-nos de sonhos sobre as mais puras seivas do existirmos. E de nos tornarmos melhores nos intrincados enredos da vida.

 

Romildo Sant’Anna, doutor e livre-docente, membro da
Academia Rio-pretense de Letras e Cultura

 

Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.