No ano
do tri, eu era
um professor em projeto. Fazia
refeições e pernoitava numa
república de futuros engenheiros,
em Barretos.
Tudo
camaradagem, não
fora
o Enrico, italiano mal-humorado,
alto,
loiro e dos cabelos
militares. Era dele quase tudo,
da geladeira
à escorredeira de macarrão.
Ai de quem
assoviasse em
presença
ou
ligasse a TV na ausência
dele! Trouxera também
um
canário-do-reino que
fazia questão
de não
cantar.
Por
tácita
obrigação e permuta pelas tralhas domésticas, revezávamos no
alpiste,
couve,
água
fresca
e limpeza
da gaiola,
levando o pássaro ao banho
de sol
no galho
da amoreira.
No jogo final
contra
a azzurra, Enrico transportou a TV
para o
seu quarto.
Iríamos assistir
à partida
no bar da esquina, tomando
conhaque
barato
pra
rebater
o frio.
E voltaríamos disfarçando a alegria e maldizendo o polenteiro
fascista.
Mas. Um dos colegas escalado
pra
limpar a
gaiola,
deixou o canário
escapar. Pousou na cumeeira
da casa
vizinha.
Enquanto
vinha
a escada,
voou desnorteado para
o fio
de luz
e sumiu. Foi o deus-nos-acuda, ai se o Enrico souber! Reapareceu no
telhado, brilhando-lhe o peito
amarelo.
Desceu no quintal, mas
se assustou com
a tarrafa
de lençol
que
lhe
atiramos. Foi ao muro, mas não se deteve, assustado
com
gritos de
gol.
A seleção canarinha vencia e
nós,
aflitos, perdíamos. Aninhou-se na sibipiruna da
esquina,
parecia divertir-se com
nosso
desespero.
Fingíamos distraídos,
distantes
e nos
achegávamos. Mirava insolente,
ia ao muro,
após
à trave
do varal, à pérgula
de buganvília e, de novo,
descansava no fio de luz.
Silêncio de
tragédia. Os
italianos empataram, pois
Enrico soltou seu
urro
solitário
e intermitente.
Temendo que
saísse à porta
em
menosprezo
aos braziliani, nos
abaixamos por
detrás
do muro.
Novos
gritos, rojões. Aproximamo-nos do
bicho
ofertando-lhe dádivas. Escutava hesitante aos nossos pedidos de
trégua.
Trinamos baixinho em
seresta,
mas
logo
voltou ao galho da amoreira. Rezamos o creio-em-deus-pai, fizemos
promessa a São
Longuinho inda
que
o que
se perdera estivesse bem ali à
nossa
frente.
Dissemos-lhe palavras
doces.
Supliquei-lhe de joelhos,
desmantelado em
pedidos.
Invoquei meu padroeiro São Judas, mostrei-lhe a
contrição
por
todos
os pecados por pensamentos,
atos
e palavras. Quatro
a um! – um bêbado gritou.
Malquerido, o canário se rendeu a uma
folha de
almeirão
deixada à porta
escancarada da gaiola.
Entrou altivo, bebeu água
e cantou pela
primeira
vez.
Aplaudimos e ele
gritou mais
alto,
vangloriando-se do baile
que
nos
dera, o fascistinha ordinário!
Decerto se decepcionara o inesperado indulto. No bar,
torcedores
roucos, amarrotados de alívio. No
rebuliço, Carlos Alberto alevantou a
taça
e mil mãos se ergueram para
tocá-la. A Copa do Mundo é nossa! De
repente, a
TV se apagou. Que
houve? – mil corações se entreolharam. Seria o desmancha prazer, um
torturador da ditadura? Não. Era a força que acabou.
Romildo Sant’Anna, livre
docente, membro
da Academia Rio-pretense de
Letras e Cultura |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |