O conto “A
terceira margem do rio”, de Guimarães Rosa, é a fábula dum camponês que
escavou num tronco uma canoinha de nada, entrou com ela num rio e lá
ficou aproado, à procura do invisível. Com perícia de estupendo artista,
o autor nos põe frente a frente com os mistérios que insinuam os aléns,
enigmas dos sentimentos e transcendências da vida. Essa pequena joia de
“Primeiras Estórias” é o ato estético talvez mais sensível do escritor
mineiro.
Mas me alembro
de outro gênio da palavra, o alemão Bertolt Brecht. Nuns versos, enuncia
mais ou menos assim: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento.
Mas ninguém chama violentas as margens que o comprimem.”. O poeta e
dramaturgo das aflições humanas no entreguerras nos alerta,
pedagogicamente, que não são os rios os desembestados, mas o entorno que
os sufoca. Embora mimetizem fatos da vida, diferentemente de Rosa,
Brecht alude a nosso existir na dimensão palpável, histórica e
societária. Somos produtos do que nos rodeia.
São as margens
rudes da inépcia de planejadores e gestores públicos, de gananciosos
imobiliários e relaxados dos próprios restolhos que induzem a sanha das
águas nos temporais que devastam cidades. Repentinamente, põem vias,
coisas e vidas à beira do caos e do medo. Nesses casos, ponderáveis e
sazonais, os humores da natureza agredida e incontrolável nada mais
fazem que episódios reativos. Contudo, são as margens medonhas do
sistema de ensino que anestesiam nos jovens a ideia de cidadania e
possessão de si mesmos. Assim, são manipuláveis por resquícios de
escravismo. “Ai da educação em que o material didático mais barato é o
professor!” – diria Chico Anísio em frase tragicômica.
As margens
virulentas da pobreza hereditária transformam em potes de amargura
inumeráveis crianças sem terem ao menos o registro de nascimento.
Sonega-se-lhes o direito de serem designadas por um nome em letra de
forma. E, decerto, existindo, não existem. As mesmas barrancas que as
oprimem são as que geram afluentes de ressentimentos, riachos de
angústia e rios humanos que irrompem em desatinos. Embora as margens da
injustiça as sentenciem, por inversão de sentido, as vítimas são os
marginais.
Brecht, mais
que mencionar as duas margens e seus rios e ritos, alegoriza a dialética
de ofendidos ante a torpeza de ofensores. Se muitos países tiveram as
carnes retalhadas pra darem-se conta disso, por aqui inda não se
equacionam margens e rios em modos decentes e humanos. Evitar-se-iam
tempestades de rancor, como as duma criatura mítica de Chico Buarque e
Paulo Pontes, em “Gota D’água”: “Enquanto comandavam meu destino eu fui,
fui recuando, recolhendo fúrias. Hoje sou onda solta e tão forte quanto
me imaginam fraca”. Para tais aguaças não há barragens, tampouco
prisões. Nem bocas de lobos em que se derramem corpos liquefeitos e
almas empedernidas. Tudo numa obscura margem de nós e nas intempéries
toscas desse mundo. |
Romildo Sant'Anna, escritor e jornalista, é professor do curso de pós-graduação em "Comunicação" da Unimar - Universidade de Marílía, comentarista do jornal TEM Notícias - 2" edição, da TV TEM (Rede Globo) e curador do Museu de Arte Primitivista 'José Antônio da Silva' e Pinacoteca de São José do Rio Preto. Como escritor, ensaísta e crítico de arte, diretor de cinema e teatro, recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais. Mestre e Doutor pela USP e Livre-docente pela UNESP, é assessor científico da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Foi sub-secretário regional da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência. |